O empório e a enciclopédia

Uma abordagem comparatista das listas de Sei Shônagon e de Jorge Luis Borges

Em “O Idioma Analítico de John Wilkins”, do livro Outras Inquisições, de 1952, Borges afirma que a décima-quarta edição da Encyclopædia Britannica “suprime o verbete sobre John Wilkins” (BORGES, 1974, p.706, minha tradução). Essa supressão, no entanto, não é tão grave como parece, pois o artigo sobre Wilkins era “trivial”, de “meras circunstâncias biográficas”. O ensaio de Borges parece querer corrigir esse problema, propondo, no lugar do verbete banal, uma reflexão sobre a obra “invisível” de Wilkins. As categorias de Wilkins têm, para Borges, beleza poética: “a beleza figura na décima-sexta categoria; é um peixe vivíparo, oblongo”. Em seguida, como que por distraída associação, afirma:

Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o Doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa, que se intitula Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Em suas remotas páginas, está escrito que os animais se dividem em: a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.

BORGES, 1974, p.708, minha tradução

Dentre os diversos textos mencionados por Borges em “John Wilkins”, apenas o Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos é fictício; todas as outras classificações e linguagens sintéticas mencionadas realmente existiram. O Doutor Franz Kuhn, orientalista alemão, é responsável por uma importante tradução do romance chinês O Sonho do Quarto Vermelho, muito admirada por Borges e resenhada por ele em 1937 (BORGES, 2008, p.214–215). A própria enciclopédia chinesa pode ter origem nas remotas páginas de outra enciclopédia: a 11ª. edição da Britannica, de 1910 (ENCYCLOPÆDIA, 1910), que teve papel fundamental na formação do imaginário borgeano. Balderston (2000, p.180–181) destaca o volume 6 dessa coleção, no qual há um verbete extenso sobre a China, sua geografia, população, cultura e história. A parte sobre literatura chinesa é de autoria de Herbert Allen Giles, e inclui o seguinte parágrafo:

[Uma enciclopédia chinesa intitulada T’u Shu Chi Ch’êng, com o objetivo de abranger todas as divisões do conhecimento, tinha seu conteúdo distribuído em seis categorias principais, as quais, por falta de melhores equivalentes, podem ser vertidas como: (1) o Céu; (2) a Terra; (3) o Homem; (4) as Artes e Ciências; (5) a Filosofia e (6) a Ciência Política. Essas categorias eram subdivididas em 32 classes […]; por exemplo, a categoria “Céu” é subdividida em quatro classes […]: (a) o Arco Celeste e suas Manifestações; (b) as Estações; (c) a Astronomia e a Matemática e (d) os Fenômenos Naturais. Abaixo dessas classes, temos os termos individuais — e é aqui que o estudante estrangeiro pode ter muitas dificuldades de compreensão. Por exemplo, a classe (a) inclui a Terra, em seu sentido cosmogônico, como a mãe da humanidade; o Paraíso, em seu sentido original de Deus; o Princípio Dual na natureza; o Sol, a Lua e as Estrelas; o Vento; as Nuvens; o Arco-Íris; o Trovão e o Raio; a Chuva; o Fogo; et cetera. No entanto, a Terra é ela mesma uma categoria geográfica, e todos os estranhos fenômenos relacionados a muitos dos itens da classe (a) estão registrados na classe (d). A categoria número 6, intitulada “Ciência Política”, contém classes como Cerimonial, Música e Administração de Justiça, juntamente com Artes Aplicadas, o que impede o estudo da obra com facilidade, a menos que haja um prévio estudo cuidadoso da sua estrutura.

GILES, 1910, p.230, minha tradução

O “estudo cuidadoso da sua estrutura” foi realizado pelo filho de Giles, Lionel, que em 1911 publicou um minucioso Índice Alfabético para a Enciclopédia Chinesa T’u Shu Chi Ch’êng (GILES, 1911). O início da introdução desse livro é de especial interesse para a minha discussão, tanto pelos detalhes que o aproximam da enciclopédia de “John Wilkins”, quanto por aqueles que Borges escolheu modificar:

Os chineses começaram muito cedo em sua história literária a compilação de dicionários e de outras obras de referência, cuja utilidade, no entanto, era muito restrita, devido à ausência de um alfabeto. Consequentemente, eles tiveram de desenvolver muitos métodos desajeitados de organização, o mais antigo dos quais era a divisão por assunto. Esse sistema é empregado no Êrh Ya (爾雅), um antigo guia para o correto uso de vocábulos, provavelmente do século V a.C., e seu uso em obras conhecidas como lei-shu (類書) ou “enciclopédias” persistiu até os dias de hoje. Eis as dezenove classes ou categorias do Êrh Ya: (1) Explanações (詁); (2) Vocábulos (言); (3) Instruções (訓); (4) Relacionamentos (親); (5) Prédios (宮); (6) Utensílios (器); (7) Música (樂); (8) o Céu (天); (9) a Terra (地); (10) os Montes (丘); (11) as Montanhas (山); (12) Rios (水); (13) Plantas (草); (14) Árvores (木); (15) Insetos (蟲); (16) Peixes (魚); (17) Pássaros (鳥); (18) Animais Selvagens (獸); (19) Animais Domésticos (畜). Note-se como são vagas as três primeiras divisões, assim como é grosseira a classificação como um todo.

GILES, 1911, p.v, minha tradução

Se a citação do Giles pai tem o “et cetera” que vamos encontrar em “O Idioma Analítico”, a explicação do Giles filho (que seria, no entanto, bem mais difícil de provar que Borges conheceu) parece mais próxima de uma primeira leitura possível do Empório Celestial, pois Lionel Giles chama a atenção para a crueza e indefinição do Êrh Ya, apontando, como o faz o Doutor Franz Kuhn em “John Wilkins”, as “ambiguidades, redundâncias e deficiências” (BORGES, 1974, p.708) dessa enciclopédia chinesa, que ele atribui à “ausência de um alfabeto” (GILES, 1911, p.v).

T’u Shu Chi Ch’êng. Esta enciclopédia chinesa do século XVIII, um possível protótipo para o fictício Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos, de Borges, tinha mais de oitocentas mil páginas. Foram feitas apenas 64 cópias da primeira edição, quase todas perdidas.

A inferioridade da escrita chinesa frente à europeia é um lugar comum do discurso orientalista. As diferenças culturais são vistas em termos de uma falta — ainda que o sistema de escrita chinês seja, na verdade, muito mais vasto e complexo do que o ocidental. Em sua “racionalidade ocidental”, Lionel Giles pretende “consertar” os “defeitos” da enciclopédia chinesa, criando para ela um índice alfabético, e resolvendo o problema de sua “utilidade restrita”. Borges, por outro lado, reverte o triunfante orientalismo britânico e expõe em seu texto o absurdo de todos os sistemas classificatórios, mesmo os que se apresentam como mais sensatos e “ocidentais”, comparando-os à enciclopédia chinesa com o objetivo de denunciar a sua irrestrita inutilidade diante do heterogêneo universo, “que outros chamam de Biblioteca” e que inclui “milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos” e “a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro” (BORGES, 1974, p.465; 467–468).

O alfabetocentrismo de Lionel Giles. O orientalista britânico propôs, em 1911, solucionar o problema do conhecimento chinês — organizado, em sua opinião, de maneira caótica — por meio da confecção de um índice baseado no alfabeto romano.

Borges propõe a combinação de real e fictício para contestar a autoridade das narrativas e discursos centrais; por outro lado, em sua obra, a acumulação de nomes de lugares e personagens de diversas épocas (antiguidade, classicismo, modernidade), lugares (Oriente, Ocidente, o “Sul”, as orillas, Buenos Aires) e reputações (centros, periferias, assim como os excluídos inclusive das periferias — o extremo Oriente, por exemplo) reapresenta o mundo como um lugar mais total e mais simultâneo (BALDERSTON, 2002).

A fragmentação do real de que fala Borges tem pontos de contato e mesmo fontes intertextuais em comum com o universo literário de Sei Shônagon. A maneira como os autores que escrevem sobre O Livro de Travesseiro interpretam a heterogeneidade do texto é reveladora. Alguns procuram encontrar na desordem um método; outros, como Jacqueline Pigeot, afirmam que “trata-se de uma obra que, ainda que ‘literária’, não é nem uma narrativa nem um poema […] na realidade, não possui um gênero preciso” (PIGEOT, 1990, p.110; meu negrito).

Os fragmentos “substantivos” abrem margem para diversas interpretações. Poderia se tratar de um “jogo de associações”, uma espécie de entretenimento de salão da época, ao qual Sei Shônagon teria dado forma poética; ou talvez a autora esteja construindo um repertório de regras estéticas, uma descrição do refinamento aristocrático, tal como concebido por aquela sociedade. Há ainda a hipótese de que essas listas sejam inventários de topoi poéticos. Algumas seções muito obviamente exemplificam a categoria proposta no intertítulo. Por exemplo, o fragmento de número 35 é uma lista de flores de árvores:

             Flores de árvores. Escuras ou claras, as flores da ameixeira vermelha. As flores da cerejeira, com pétalas grandes e folhas escuras, num fino galho florido. As flores da glicínia, em longas cachopas de cor forte, são muito lindas.

             Entre o fim do quarto mês e o início do quinto, não há nada mais belo de se ver, pela manhã, do que as flores brancas da laranjeira tachibana em contraste com suas folhas verde-escuro, cobertas da chuva da noite anterior. Se, além disso, dá para se ver uma ou duas frutas, como esferas douradas por entre as flores, o espetáculo não perde em nada para as flores da cerejeira cobertas de sereno! Não é de espantar que os nossos poetas digam que o pequeno cuco é amigo da laranjeira.

             A flor da pera é a coisa mais ordinária e sem graça que existe. Ninguém enfeita a casa com flores de pereira, e seus galhos não servem nem para amarrar a cartinha mais simples. Quem compara o rosto de uma mulher à flor da pera quer dizer que tal mulher não é muito atraente, porque não tem muita cor. No entanto, na China, há poetas que a consideram a mais bela de todas as flores; e, na verdade, quando se olha de perto, há na borda das pétalas uma coloração rosa, que quase não se vê. Lembro-me que foi à flor da pera que o poeta comparou o rosto de Yang Guifei, quando ela foi encontrar, chorando, o mensageiro do Imperador: “como flores de pera na primavera, respingadas de chuva”. Pensando bem, a flor da pera também é admirável!

             As flores lilases da paulóvnia são também muito bonitas. Não aprecio tanto as suas folhas, que são muito grandes, mas não a critico como se fosse uma árvore comum, pois muito me impressiona saber que a fênix da China se recusa a pousar em qualquer outra. Além disso, é da madeira da paulóvnia que se faz o koto, do qual se extraem tão distintos e belos sons. De fato, “muito bonita” não é elogio suficiente para essa árvore. Ela é realmente maravilhosa!

             O cinamomo não é bonito, mas eu gosto de sua florzinha. Mesmo com uma aparência ressequida, há sempre flores dessa árvore no quinto dia do quinto mês.

SEI, 1997, p.86–88, fragmento 35; minha tradução

Esse fragmento, como alguns outros, esconde por trás de sua aparência desorganizada e arbitrária a “fantasia do enumerador, que regula a disposição dos elementos no interior da lista” a partir de critérios “não científicos”; além disso, a autora realiza outra “manipulação” do gênero textual “lista”: ela “enxerta comentários que rompem o efeito de catálogo” (PIGEOT, 1990, p.113), desestabilizando até mesmo a leitura de acadêmicos que quiseram categorizar os diferentes fragmentos de seu livro a partir de critérios rígidos. Por outro lado, existe aqui também um diálogo intenso com as coletâneas de poesia conhecidas na época. Tanto o Man’yôshû (séc. VIII) como o Kokin’wakashû (séc. X) ordenam muitos de seus poemas por meio de palavras-chave sazonais, que associam determinados elementos da natureza a um dado momento no ciclo das estações. A ordem em que as flores são mencionadas não é arbitrária. A ameixeira floresce no fim do inverno, e marca a transição para o início da primavera. A cerejeira é a flor mais comumente associada à primavera. A glicínia, também uma flor de primavera, é, além disso, associada à capital e à aristocracia, devido à cor roxa de suas flores. O par cuco-laranjeira é ainda mais interessante: um poema do Man’yôshû pede que o cuco não comece a cantar enquanto a tachibana não der frutos, ou seja, antes que comece o verão (SHIRANE, 2012b). A pereira floresce na mesma época que a tachibana. A paulóvnia também floresce no verão, assim como a flor do cinamomo, associada a uma data festiva que era comemorada no quinto dia do quinto mês (o “festival do íris aromático”).

A progressão é interessante: ameixeira / cerejeira / glicínia / cuco-tachibana; seguidos por pereira / paulóvnia / cinamomo. A primeira “metade do texto” lista as flores e um dos pássaros mais fortemente associados à poesia, todos descritos com expressões positivas. A “segunda metade” discute o status de três árvores, por assim dizer, “problemáticas”: a flor da pereira é feia; a folha da paulóvnia é grande demais; e a do cinamomo parece meio ressequida. Todas elas se redimem, no entanto, por um aspecto positivo a ser destacado. A flor da pereira é assunto da poesia chinesa. A paulóvnia, da mesma maneira que a tachibana, é uma árvore associada a um pássaro (ainda que mitológico). Além disso, a paulóvnia serve para a confecção de instrumentos musicais. Por último, a flor do cinamomo é indispensável no calendário dos eventos da corte imperial.

Aliás, todas as sete árvores são, de uma forma ou outra, associadas à vida no palácio: as primeiras três não podem faltar nos jardins do imperador; um pé de cerejeira e outro de tachibana, considerados sagrados, flanqueiam a entrada principal do pavilhão do imperador em Quioto (na Era Heian e ainda hoje); a pereira e a paulóvnia estão de alguma forma associadas à figura do imperador da China; e, por último, o cinamomo, que, apesar de ser a árvore da lista que menos chama a atenção, é elevado de seu lugar humilde por ocasião de um importante evento imperial.

O trecho tem um movimento de diminuendo, começando com as flores mais exaltadas (e com um maior número de poemas escritos sobre elas em japonês), chegando a um clímax na descrição — poética e que faz alusão à poesia — do casal cuco-tachibana. Em seguida, há duas alusões à cultura da China (o poema de Bai Juyi e a fênix), que vindo depois das flores preferidas por Sei Shônagon, se encontram numa posição de menor importância (poema japonês > poema chinês). Por último, uma flor “humilde” fecha a lista, valorizada de alguma forma por suas associações com o calendário da corte.

Pigeot (1990, p.112) afirma que grande parte das listas wa é inspirada em obras como o Shinsen Jikyô ou o Wamyô Ruijishô, “o mais antigo dicionário chinês-japonês, publicado no Japão por volta de 934” (FRÉDÉRIC, 2008, p. 1245). Uma das versões deste último está dividida em 24 categorias: o universo; as pessoas; a aparência; as doenças; artes e ofícios; os prédios; barcos e carros; tesouros; tecidos; roupas; bebida e comida; louças e vasilhas; lâmpadas e luminárias; ferramentas; animais alados; animais de pelo; vacas e bois; dragões e peixes; tartarugas e moluscos; insetos e bichinhos; cereais; verduras; melões e frutas; e plantas (BAILEY, 1960, p. 18–19).

Essas obras, por sua vez, se baseiam em divisões por categorias que remontam à cultura letrada chinesa, tal como ela foi codificada em obras como o Ěryǎ. No entanto, essas categorias temáticas e lexicais são utilizadas por Sei Shônagon para realizar um tipo diferente de jogo. Em primeiro lugar, porque ela “escamoteia a tendência à exaustividade que caracteriza a lista didática” (PIGEOT, 1990, p.112). A autora seleciona os itens de suas enumerações a partir de ideais estéticos, como wokashi ou aware, e “o conteúdo das listas mostra que é melhor interpretar a sua abrangência como restrita — ler, por trás de ‘Montanhas’: ‘Montanhas que me atraem, me encantam ou divertem devido à sua forma, nome, etc.’” (PIGEOT, 1990, p.112). Essa maneira de redigir a lista não pode ser considerada como científica nem como didática.

Primeira página do índice de uma cópia do fim da Era Edo do Shinsen Jikyô, um dicionário de kanji compilado no final do século X. Os primeiros sete caracteres são: “céu”, “sol”, “lua”, “carne”, “chuva”, “vento” e “fogo”. “Cavalo” aparece na posição 42.

Algumas listas da autora não seriam classificadas como listas em um contexto ocidental. Por exemplo, quando a lista tem um item:

Gatos. Os que têm as costas pretas e a barriga bem branquinha.

SEI, 1997, p.109, fragmento 50; minha tradução

Trata-se de outro tipo de lista: nesse caso, Sei Shônagon está determinando quais são os melhores representantes de uma dada categoria (“Se você inventar de ter um gato, é bom que seja preto e branco”). E, como se trata de um caso em que apenas uma apresentação é aceitável (“Fora essa, a categoria gato não oferece nenhuma outra possibilidade de excelência”), então a lista tem apenas um item. Sobre essa questão, Pigeot se interroga sobre o que ela considera um “problema de método”: “qual é o número mínimo de unidades para que se possa falar de enumeração, de lista?” (PIGEOT, 1990, p.113). Esse tipo de rol de um só item lembra ainda, guardadas as diferenças, textos que usam um intertítulo para designar um conjunto vazio, como o famoso “Capítulo sobre cobras” da História Natural da Islândia, que se resumia a informar que nessa ilha não há nenhum espécime do animal, ou ainda o célebre Capítulo CXXXIX de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que trata do assunto “De como não fui ministro de estado” (ASSIS, 1881, p.349).

Uma das características de Memórias Póstumas de Brás Cubas é a experimentação formal com os intertítulos. A maneira como Machado de Assis divide os capítulos está associada a um fino senso de humor, que não soaria estranho a Sei Shônagon. Alguns capítulos são muito curtos, com apenas uma reflexão, frase ou parágrafo. Aqui, pode-se ver como se apresentava o Capítulo CXXXIX na primeira edição da obra: a página possui um apelo visual que dialoga mesmo com a poesia concretista.

Que a obra de Sei Shônagon tenha finalmente adotado o título de Makura no Sôshi vem reforçar essa característica, pois um dos referentes que o sôshi pode designar é o caderno costurado, composto de folhas inicialmente avulsas, e que foram reunidas por sua proprietária em um conjunto. Esse conjunto pode, a priori, não ser resultado de um projeto coerente; no entanto, quando costuradas juntas, essas folhas passam a ter um padrão determinado pela autora que as colecionou.

Questão de leitura, um olho clássico ou pré-moderno não enxerga nesse padrão uma ordem digna de ser caracterizada como autoral — e muito menos como sistemática. Por sua vez, um olho modernista pode interpretar a “bela desordem” das folhas como uma reação aos ideais clássicos de estrutura, de progressão lógica ou de harmonia — quando, na verdade, a aparente desorganização do texto de Sei Shônagon pode não ser uma reação a tradições anteriores, e sim resultado de uma maneira orgânica (e, na sua época, tradicional) de se reunir e produzir textos. Por fim, para grande parte da literatura pós-moderna que se produz hoje, a criação do artefato-livro a partir de elementos heterogêneos, obedecendo a uma lógica não linear, com hibridismo de gêneros e pluralidade de vozes, é o modelo mais comum — mais ainda, é o modelo que permite, com mais facilidade, neste momento histórico em que eu escrevo este texto, a criação de obras complexas, que ponham diferentes sujeitos em diálogo, aumentando assim o valor e o poder de expressão de um conteúdo que, se tratado linearmente, correria o risco de ser desinteressante, ou de reforçar a legitimidade de uma ordem política antiquada.

Nenhuma dessas leituras, no entanto, é a “mais correta” ou a “verdadeira” leitura do texto. Alguns elementos podem ser refutados se usarmos, como Gadamer (1997), uma ideia virtual do texto tal como ele era lido pelos antigos, contemporâneos da sua escritura. A antiguidade do texto torna fútil a própria ideia de que ele seja um clássico — ele não era um clássico para seus contemporâneos, e tampouco foi composto a partir de uma ideia de sublime ou de belo que permita afirmar, hoje, que ele pertencia a uma categoria designada como a alta literatura de sua época (ao contrário, por exemplo, do Kokin’wakashû, que se pretendia uma seleção oficial, com prerrogativas quase religiosas, daquilo que de melhor fora feito até então).

Este texto é um excerto de um artigo que eu publiquei em 2017. Referência: CUNHA, Andrei. O Empório e a Enciclopédia: uma abordagem comparatista da enumeração caótica em Sei Shônagon e Jorge Luis Borges. CERRADOS, v. 25, p. 6-29, 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/35431137/O_Emp%C3%B3rio_e_a_Enciclop%C3%A9dia_uma_abordagem_comparatista_da_enumera%C3%A7%C3%A3o_ca%C3%B3tica_em_Sei_Sh%C3%B4nagon_e_Jorge_Luis_Borges>. Acesso em: 12 set. 2021.

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Autor: andreiscunha

Olá! Meu nome é Andrei Cunha. Sou tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

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