Arquiteturas delicadas para tempos difíceis

artigo publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 2021

Na quase exata metade de seu mais recente livro (p.45), de repente Ricardo Silvestrin nos confunde com um poema de amor que fala de um casal que vive junto há muitos anos e ainda se surpreende um com o outro. A incidência de discurso amoroso em um livro de poemas não deveria, normalmente, causar susto: poesia e amor, afinal, são companheiros frequentes, e há inclusive teóricos que afirmam que foi uma que inventou o outro. No entanto, até chegarmos a esse poema, nada levaria a crer que haveria no livro um momento romântico. Até aquele ponto na leitura, há uma sequência de poemas visivelmente escritos neste nosso agora — sufocante, terrível e sem perspectiva de abraços nem beijinhos.

Em entrevista recente, Silvestrin afirma que “Carta aberta ao Demônio surgiu em um momento no qual todo o mundo estava escrevendo cartas abertas, notas de repúdio, todo o mundo fazendo abaixo-assinado”. O poema epônimo (p. 36) debocha do tom solene dos gêneros textuais em que se inspirou (“venho por meio desta”, “efeméride”, “homenagem”); adota, ainda, para se dirigir ao diabo, um linguajar malandro (“meu chapa”) e faz bom uso da polissemia da palavra “bestas”, sugerindo ao demônio que as leve todas “para os quintos / dos infernos”.

Os poemas da primeira parte se apresentam como um quase diário ou documento: “Porto Alegre é um buraco entre morros, / montanha-russa por onde desce e sobe / uma procissão de carros” (p. 16). O registro é necessário para que, como sugere a epígrafe de Maiakóvski, os leitores futuros possam conhecer a nossa presente atmosfera: “Eu não sabia, / agora sei, / o que é viver / numa ditadura” (p. 30). Parece uma observação óbvia, mas vivemos tempos em que é mais urgente do que nunca dizer o óbvio, estetizar o óbvio, tornar o óbvio de novo visível, repetir exaustivamente o óbvio, porque de há muito o óbvio deixou de ser consenso.

A sequência de poemas-agora ocupa apenas um terço do livro. Os outros dois terços estão divididos em “Outros cantos”, “Errata” e “Atribuído a mim”. Na segunda parte, os poemas têm um marco temporal mais amplo e falam de velhice, de morte, de livre arbítrio. Há um diálogo intertextual com a tragédia grega, uma discussão sobre a força do destino. Aqui, reconhecemos mais facilmente a voz de Silvestrin, um poeta com 37 anos de carreira e que, desde o início de sua trajetória, buscava falar com palavras “simples” de temas “complexos” — as aspas, aqui, indicando que a sua obra problematiza a ideia mesma de uma oposição entre “fácil” e difícil”, entre “erudito” e “popular”, à semelhança de Manuel Bandeira (tema de sua dissertação de mestrado) e de dois poetas que ele admira e traduziu: Kobayashi Issa e Paul Verlaine.

A divisão em partes e o sequenciamento encerram um desígnio. Assim, os poemas de urgência de “Outro tempo” adquirem uma nova profundidade e ancoramento ao serem sucedidos pelas reflexões de maior vagar de “Outros cantos”. O poema de amor mencionado anteriormente, “De mãos dadas” (p. 45), cria um efeito de surpresa na narrativa mas, dois poemas depois, o poeta já está acusando o amor de ser “um sufoco”, “um conceito histórico” com “função no patriarcado” e que precisa “ser superado pela marcha revolucionária” (p. 49). Essas inversões de expectativa ocorrem diversas vezes de um poema a outro, dando textura ao conjunto quando lido na ordem proposta.

Há uma multiplicidade de vozes e formas de ser no mundo: às vezes, é possível apostar na beleza, no futuro; em outros momentos, tudo está destinado a acabar e a verdadeira sabedoria consiste em aceitar esse fim. Os poemas são como que meditações sobre diferentes atitudes mentais diante da vida. O poeta afirma que sua filosofia é o “inexistencialismo”: “Em breves momentos, o que se passa / no meu não tempo e não espaço / coincide com o que se passa no tempo de todos” (p. 32).

Essa possibilidade metafísica é explorada de duas maneiras distintas nas duas últimas partes do livro. Em “Errata”, conceitos abstratos da política e do direito — como nacionalidade, identidade, profissão, cidadania, óbito — são analisados pelo olho rigoroso da linguagem poética, que constata, sem surpresa, que essas ideias tão solenes constituem um mundo de palavras vazias. É inútil buscar um conceito estável de nação, o que já fora afirmado na primeira parte: “Um país é uma ficção, / um amontoado de diferenças” (p. 20). Essa ficção precisa ser desafiada: “quem nasceu neste mapa / quem desfaz essa naba […] / nos dois polos de um ímã / a nação não se irmana” (p. 89). Da mesma forma, aquilo que o Estado entende por “identidade” é um projeto de uma futilidade risível: “assinatura amarga / firmada nesse hoje […] / a vida se liquida / e sobra um documento” (p. 91).

Na última parte do livro, “Atribuído a mim”, o conceito de identidade, analisado em abstrato na seção anterior, é pensado em diálogo com a própria vida do eu lírico, de suas memórias, de seu corpo, de seus escritos. Problematiza-se a ideia de que exista uma congruência entre poeta, texto, identidade, posteridade, etc. O poeta imagina uma obra que sobreviva ao homem que a escreveu, e constata que a obra “inventa um autor / que renasce e recria a obra” (p. 100).

A julgar pelas resenhas críticas já disponíveis, Carta aberta ao Demônio vai causar impacto imediato graças à primeira parte — a que está em diálogo direto com o período histórico sombrio que estamos vivendo. O próprio subtítulo, “Outro tempo”, anuncia que essa seção foi escrita em um momento anômalo, como a explicar ao leitor do futuro a urgência dos versos: “Haverá um tempo (ou não haverá) / em que a história será outra. / Por enquanto, é o que temos” (p. 26). Os 22 poemas do início formam um todo coeso, claustrofóbico, às vezes quase insuportável, de atualidade. O princípio é o contrário daquele proposto por Wordsworth, que definia a poesia lírica como “emoção que se recorda na tranquilidade”. Forjando a ferro quente, o poeta documenta nossos interessantes tempos: “Viver na história, / com seu jogo de circunstância, / perda, ganho, derrota e glória” (p. 34).

Ouso imaginar que, em outros tempos, futuros leitores vão se interessar pela segunda parte, a das canções de experiência, e que vão encontrar ali um poeta de reflexões de largo alcance, destiladas ao longo de décadas de ofício poético. Uma música mais suave, mas que fica na mente por muito tempo.

No entanto, foram as duas últimas seções as que mais me impressionaram, pessoalmente. Se o livro fosse um soneto, e se as duas primeiras partes fossem as estrofes de quatro versos, as partes III e IV são os dois tercetos, a cristalizar uma arquitetura delicada para tempos difíceis. Se a sociedade e a língua são incapazes de unificar “um amontoado de diferenças”, o tempo se encarregará de apagar a memória de qualquer vida, de qualquer verso, de qualquer realidade. A estrutura transcende a soma de suas partes. Emerge do conjunto uma visão complexa do papel da poesia nos acontecimentos terrestres.

Artigo publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 9 de outubro de 2021. Referência: CUNHA, Andrei. Arquiteturas delicadas para tempos difíceis. Caderno de Sábado (CS), Correio do Povo, Porto Alegre: p. 2, 09/10/2021. Disponível em: <https://www.academia.edu/56964703/CUNHA_Andrei_Arquiteturas_delicadas_para_tempos_dif%C3%ADceis_Caderno_de_S%C3%A1bado_CS_Correio_do_Povo_Porto_Alegre_p_2_09_10_2021>. Acesso em: 10 out. 2021.

Quem traduz literatura japonesa no Brasil

artigo publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 2020

No Brasil, muitos ainda tratam a literatura japonesa como se fosse arte de marcianos. Há quem avise já de saída que se interessa apenas por “literatura ocidental”, eximindo-se por antecipação de pensar o planeta de forma mais integrada. Não há dúvida de que a visão de mundo que mais seguido eu encontro ao discutir literatura é realmente a “ocidental” — no sentido de que aqui aceitamos, como um pacote fechado, a visão importada de mundo que o tal de “ocidente” nos fornece.

Tomemos o haicai como exemplo. Tal como praticado hoje, no Brasil, o haicai pode ser acusado de diversas coisas — mas de exótico à nossa cultura, não. O haïkaï,assim todo francês em sua grafia, já era mencionado em 1925 por Paulo Prado no prefácio a Pau Brasil, de Oswald de Andrade. A palavra está dicionarizada em português e é parte importante de nossa tradição poética há, pelo menos, oito décadas — mais precisamente, desde que Guilherme de Almeida publicou os seus haicais, em 1937. A poesia japonesa foi revisitada pelo movimento concretista, que reivindicava para si a estética “ideogramática” proposta pelo americano Ezra Pound e pelo russo Sergei Eisenstein — a cujos textos recorremos até hoje para entender o “ideograma”, a despeito de suas nacionalidades não japonesas.

Mas essa não é a única maneira de se contar essa história… Pode-se dizer que o haicai foi trazido antes, pelos imigrantes japoneses. Do primeiro navio japonês a atracar no porto de Santos, em 1908, desembarcou Uetsuka Shuhei, que teria escrito o primeiro haicai feito em terras brasileiras. Na geração seguinte, o Brasil recebeu Nempuku Sato, que trouxe consigo os princípios da escola de Masaoka Shiki (o renovador do gênero para o modernismo japonês). Masuda Goga, o maior haicaísta brasileiro, foi discípulo de Sato; Teruko Oda, a maior haicaísta brasileira viva, foi discípula de Goga. É a partir das tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que uma nova vertente de autores de haicai floresce atualmente no Brasil: no início, esses grupos eram compostos por imigrantes e descendentes de japoneses; hoje em dia, os clubes e agremiações de haicai acolhem todo tipo de sócio e a produção poética se dá tanto em japonês como em português. No entanto, como esses fazeres poéticos se baseiam em comunidades não centrais à cultura brasileira considerada como “alta”, e como não fazem referência a línguas ou culturas de prestígio, elas ainda são vítimas de incompreensão. A literatura dos países “exóticos” precisa passar por um processo de mediação antes de ser aceita no Brasil. Nossa concepção de poesia japonesa veio forjada por um orientalismo de segunda mão — um orientalismo periférico.

Um dos “perfis de tradutores de obras literárias japonesas” que encontramos no Brasil é o do tradutor profissional de uma língua hegemônica, como o inglês ou o francês, a quem é proposta a tarefa remunerada de traduzir um texto japonês a partir de outra tradução pré-existente para uma língua “intermediária”. Esse tipo de tradutor não escolhe o que vai traduzir e raramente possui afinidade com a cultura ou a literatura do Japão, tendo sido selecionado para o trabalho pelo critério da competência tradutória em uma língua que não a japonesa. Hoje em dia, as traduções literárias indiretas são cada vez menos aceitas. Muitas obras estrangeiras são divulgadas com a informação expressa de que foram traduzidas diretamente da língua de partida, deixando implícito que são mais valiosas se feitas assim. Em Portugal, para fins de comparação, até hoje as traduções indiretas são a norma para textos japoneses.

Outra figura de tradutor brasileiro de textos japoneses é a do tradutor poeta, que usa a tradução de poesia japonesa como um instrumento de pesquisa estética. Nesse sentido, a produção brasileira de poesia japonesa traduzida está tanto ligada ao mundo da tradução como ao mundo do fazer poético. Esse microcosmo literário é complexo, cheio de variações, ecos e diálogos intertextuais. Diferente do que acontece no caso do tradutor profissional sem conhecimento do japonês a quem se encomenda um serviço, o poeta tradutor possui interesses e investimentos na cultura do Japão, e essa modalidade de reescritura poderia ser estudada como um gênero em si. Duas tradutoras poetas deixaram sua marca na década de 1980: Olga Savary e Alice Ruiz. Os primeiros trinta e cinco anos de tradução literária do japonês nos trouxeram apenas uma autora japonesa; com as traduções de Alice Ruiz, meia década nos trouxe, em duas publicações, os poemas de onze mulheres.

A partir dos anos 1990, ganha destaque a atuação de professoras universitárias pertencentes à comunidade nikkei. Uma representante dessa vertente é Meiko Shimon, que nasceu em Quioto e se mudou para o Brasil em 1953. Shimon teve participação instrumental na terceira leva de traduções (diretas) de Kawabata Yasunari, lançadas pela editora Estação Liberdade nos anos 2000. Além disso, seu trabalho como professora de literatura japonesa na UFRGS contribuiu de forma decisiva para formar uma nova geração de tradutores do japonês. De um total de 218 títulos de literatura japonesa traduzida no Brasil entre os anos de 1945 e 2020, 29 foram traduzidos por alunos, ex-alunos ou professores do Instituto de Letras da UFRGS.

A maioria dos títulos japoneses publicados em tradução no Brasil vem de São Paulo, com uma pequena participação do Rio de Janeiro. A única cidade fora do centro a entrar para a lista de locais onde se publica literatura do Japão no Brasil é Porto Alegre, por diferentes motivos: aqui, desde 1986, há um curso de Letras japonês; o Rio Grande do Sul possui uma tradição rica e antiga de poetas e de tradutores; e Porto Alegre é um reduto de pequenas editoras bastante ativas nas áreas de poesia e de escrita criativa.

Artigo publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 10 de outubro de 2020. Referência: CUNHA, Andrei. Quem traduz literatura japonesa no Brasil. Caderno de Sábado (CS), Correio do Povo, Porto Alegre: p. 2, 10/10/2020. Disponível em: <https://www.academia.edu/56963962/CUNHA_Andrei_Quem_traduz_literatura_japonesa_no_Brasil_Caderno_de_S%C3%A1bado_CS_Correio_do_Povo_Porto_Alegre_p_2_10_10_2020>. Acesso em: 10 out. 2021.

O empório e a enciclopédia

Uma abordagem comparatista das listas de Sei Shônagon e de Jorge Luis Borges

Em “O Idioma Analítico de John Wilkins”, do livro Outras Inquisições, de 1952, Borges afirma que a décima-quarta edição da Encyclopædia Britannica “suprime o verbete sobre John Wilkins” (BORGES, 1974, p.706, minha tradução). Essa supressão, no entanto, não é tão grave como parece, pois o artigo sobre Wilkins era “trivial”, de “meras circunstâncias biográficas”. O ensaio de Borges parece querer corrigir esse problema, propondo, no lugar do verbete banal, uma reflexão sobre a obra “invisível” de Wilkins. As categorias de Wilkins têm, para Borges, beleza poética: “a beleza figura na décima-sexta categoria; é um peixe vivíparo, oblongo”. Em seguida, como que por distraída associação, afirma:

Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o Doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa, que se intitula Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos. Em suas remotas páginas, está escrito que os animais se dividem em: a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.

BORGES, 1974, p.708, minha tradução

Dentre os diversos textos mencionados por Borges em “John Wilkins”, apenas o Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos é fictício; todas as outras classificações e linguagens sintéticas mencionadas realmente existiram. O Doutor Franz Kuhn, orientalista alemão, é responsável por uma importante tradução do romance chinês O Sonho do Quarto Vermelho, muito admirada por Borges e resenhada por ele em 1937 (BORGES, 2008, p.214–215). A própria enciclopédia chinesa pode ter origem nas remotas páginas de outra enciclopédia: a 11ª. edição da Britannica, de 1910 (ENCYCLOPÆDIA, 1910), que teve papel fundamental na formação do imaginário borgeano. Balderston (2000, p.180–181) destaca o volume 6 dessa coleção, no qual há um verbete extenso sobre a China, sua geografia, população, cultura e história. A parte sobre literatura chinesa é de autoria de Herbert Allen Giles, e inclui o seguinte parágrafo:

[Uma enciclopédia chinesa intitulada T’u Shu Chi Ch’êng, com o objetivo de abranger todas as divisões do conhecimento, tinha seu conteúdo distribuído em seis categorias principais, as quais, por falta de melhores equivalentes, podem ser vertidas como: (1) o Céu; (2) a Terra; (3) o Homem; (4) as Artes e Ciências; (5) a Filosofia e (6) a Ciência Política. Essas categorias eram subdivididas em 32 classes […]; por exemplo, a categoria “Céu” é subdividida em quatro classes […]: (a) o Arco Celeste e suas Manifestações; (b) as Estações; (c) a Astronomia e a Matemática e (d) os Fenômenos Naturais. Abaixo dessas classes, temos os termos individuais — e é aqui que o estudante estrangeiro pode ter muitas dificuldades de compreensão. Por exemplo, a classe (a) inclui a Terra, em seu sentido cosmogônico, como a mãe da humanidade; o Paraíso, em seu sentido original de Deus; o Princípio Dual na natureza; o Sol, a Lua e as Estrelas; o Vento; as Nuvens; o Arco-Íris; o Trovão e o Raio; a Chuva; o Fogo; et cetera. No entanto, a Terra é ela mesma uma categoria geográfica, e todos os estranhos fenômenos relacionados a muitos dos itens da classe (a) estão registrados na classe (d). A categoria número 6, intitulada “Ciência Política”, contém classes como Cerimonial, Música e Administração de Justiça, juntamente com Artes Aplicadas, o que impede o estudo da obra com facilidade, a menos que haja um prévio estudo cuidadoso da sua estrutura.

GILES, 1910, p.230, minha tradução

O “estudo cuidadoso da sua estrutura” foi realizado pelo filho de Giles, Lionel, que em 1911 publicou um minucioso Índice Alfabético para a Enciclopédia Chinesa T’u Shu Chi Ch’êng (GILES, 1911). O início da introdução desse livro é de especial interesse para a minha discussão, tanto pelos detalhes que o aproximam da enciclopédia de “John Wilkins”, quanto por aqueles que Borges escolheu modificar:

Os chineses começaram muito cedo em sua história literária a compilação de dicionários e de outras obras de referência, cuja utilidade, no entanto, era muito restrita, devido à ausência de um alfabeto. Consequentemente, eles tiveram de desenvolver muitos métodos desajeitados de organização, o mais antigo dos quais era a divisão por assunto. Esse sistema é empregado no Êrh Ya (爾雅), um antigo guia para o correto uso de vocábulos, provavelmente do século V a.C., e seu uso em obras conhecidas como lei-shu (類書) ou “enciclopédias” persistiu até os dias de hoje. Eis as dezenove classes ou categorias do Êrh Ya: (1) Explanações (詁); (2) Vocábulos (言); (3) Instruções (訓); (4) Relacionamentos (親); (5) Prédios (宮); (6) Utensílios (器); (7) Música (樂); (8) o Céu (天); (9) a Terra (地); (10) os Montes (丘); (11) as Montanhas (山); (12) Rios (水); (13) Plantas (草); (14) Árvores (木); (15) Insetos (蟲); (16) Peixes (魚); (17) Pássaros (鳥); (18) Animais Selvagens (獸); (19) Animais Domésticos (畜). Note-se como são vagas as três primeiras divisões, assim como é grosseira a classificação como um todo.

GILES, 1911, p.v, minha tradução

Se a citação do Giles pai tem o “et cetera” que vamos encontrar em “O Idioma Analítico”, a explicação do Giles filho (que seria, no entanto, bem mais difícil de provar que Borges conheceu) parece mais próxima de uma primeira leitura possível do Empório Celestial, pois Lionel Giles chama a atenção para a crueza e indefinição do Êrh Ya, apontando, como o faz o Doutor Franz Kuhn em “John Wilkins”, as “ambiguidades, redundâncias e deficiências” (BORGES, 1974, p.708) dessa enciclopédia chinesa, que ele atribui à “ausência de um alfabeto” (GILES, 1911, p.v).

T’u Shu Chi Ch’êng. Esta enciclopédia chinesa do século XVIII, um possível protótipo para o fictício Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos, de Borges, tinha mais de oitocentas mil páginas. Foram feitas apenas 64 cópias da primeira edição, quase todas perdidas.

A inferioridade da escrita chinesa frente à europeia é um lugar comum do discurso orientalista. As diferenças culturais são vistas em termos de uma falta — ainda que o sistema de escrita chinês seja, na verdade, muito mais vasto e complexo do que o ocidental. Em sua “racionalidade ocidental”, Lionel Giles pretende “consertar” os “defeitos” da enciclopédia chinesa, criando para ela um índice alfabético, e resolvendo o problema de sua “utilidade restrita”. Borges, por outro lado, reverte o triunfante orientalismo britânico e expõe em seu texto o absurdo de todos os sistemas classificatórios, mesmo os que se apresentam como mais sensatos e “ocidentais”, comparando-os à enciclopédia chinesa com o objetivo de denunciar a sua irrestrita inutilidade diante do heterogêneo universo, “que outros chamam de Biblioteca” e que inclui “milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos” e “a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro” (BORGES, 1974, p.465; 467–468).

O alfabetocentrismo de Lionel Giles. O orientalista britânico propôs, em 1911, solucionar o problema do conhecimento chinês — organizado, em sua opinião, de maneira caótica — por meio da confecção de um índice baseado no alfabeto romano.

Borges propõe a combinação de real e fictício para contestar a autoridade das narrativas e discursos centrais; por outro lado, em sua obra, a acumulação de nomes de lugares e personagens de diversas épocas (antiguidade, classicismo, modernidade), lugares (Oriente, Ocidente, o “Sul”, as orillas, Buenos Aires) e reputações (centros, periferias, assim como os excluídos inclusive das periferias — o extremo Oriente, por exemplo) reapresenta o mundo como um lugar mais total e mais simultâneo (BALDERSTON, 2002).

A fragmentação do real de que fala Borges tem pontos de contato e mesmo fontes intertextuais em comum com o universo literário de Sei Shônagon. A maneira como os autores que escrevem sobre O Livro de Travesseiro interpretam a heterogeneidade do texto é reveladora. Alguns procuram encontrar na desordem um método; outros, como Jacqueline Pigeot, afirmam que “trata-se de uma obra que, ainda que ‘literária’, não é nem uma narrativa nem um poema […] na realidade, não possui um gênero preciso” (PIGEOT, 1990, p.110; meu negrito).

Os fragmentos “substantivos” abrem margem para diversas interpretações. Poderia se tratar de um “jogo de associações”, uma espécie de entretenimento de salão da época, ao qual Sei Shônagon teria dado forma poética; ou talvez a autora esteja construindo um repertório de regras estéticas, uma descrição do refinamento aristocrático, tal como concebido por aquela sociedade. Há ainda a hipótese de que essas listas sejam inventários de topoi poéticos. Algumas seções muito obviamente exemplificam a categoria proposta no intertítulo. Por exemplo, o fragmento de número 35 é uma lista de flores de árvores:

             Flores de árvores. Escuras ou claras, as flores da ameixeira vermelha. As flores da cerejeira, com pétalas grandes e folhas escuras, num fino galho florido. As flores da glicínia, em longas cachopas de cor forte, são muito lindas.

             Entre o fim do quarto mês e o início do quinto, não há nada mais belo de se ver, pela manhã, do que as flores brancas da laranjeira tachibana em contraste com suas folhas verde-escuro, cobertas da chuva da noite anterior. Se, além disso, dá para se ver uma ou duas frutas, como esferas douradas por entre as flores, o espetáculo não perde em nada para as flores da cerejeira cobertas de sereno! Não é de espantar que os nossos poetas digam que o pequeno cuco é amigo da laranjeira.

             A flor da pera é a coisa mais ordinária e sem graça que existe. Ninguém enfeita a casa com flores de pereira, e seus galhos não servem nem para amarrar a cartinha mais simples. Quem compara o rosto de uma mulher à flor da pera quer dizer que tal mulher não é muito atraente, porque não tem muita cor. No entanto, na China, há poetas que a consideram a mais bela de todas as flores; e, na verdade, quando se olha de perto, há na borda das pétalas uma coloração rosa, que quase não se vê. Lembro-me que foi à flor da pera que o poeta comparou o rosto de Yang Guifei, quando ela foi encontrar, chorando, o mensageiro do Imperador: “como flores de pera na primavera, respingadas de chuva”. Pensando bem, a flor da pera também é admirável!

             As flores lilases da paulóvnia são também muito bonitas. Não aprecio tanto as suas folhas, que são muito grandes, mas não a critico como se fosse uma árvore comum, pois muito me impressiona saber que a fênix da China se recusa a pousar em qualquer outra. Além disso, é da madeira da paulóvnia que se faz o koto, do qual se extraem tão distintos e belos sons. De fato, “muito bonita” não é elogio suficiente para essa árvore. Ela é realmente maravilhosa!

             O cinamomo não é bonito, mas eu gosto de sua florzinha. Mesmo com uma aparência ressequida, há sempre flores dessa árvore no quinto dia do quinto mês.

SEI, 1997, p.86–88, fragmento 35; minha tradução

Esse fragmento, como alguns outros, esconde por trás de sua aparência desorganizada e arbitrária a “fantasia do enumerador, que regula a disposição dos elementos no interior da lista” a partir de critérios “não científicos”; além disso, a autora realiza outra “manipulação” do gênero textual “lista”: ela “enxerta comentários que rompem o efeito de catálogo” (PIGEOT, 1990, p.113), desestabilizando até mesmo a leitura de acadêmicos que quiseram categorizar os diferentes fragmentos de seu livro a partir de critérios rígidos. Por outro lado, existe aqui também um diálogo intenso com as coletâneas de poesia conhecidas na época. Tanto o Man’yôshû (séc. VIII) como o Kokin’wakashû (séc. X) ordenam muitos de seus poemas por meio de palavras-chave sazonais, que associam determinados elementos da natureza a um dado momento no ciclo das estações. A ordem em que as flores são mencionadas não é arbitrária. A ameixeira floresce no fim do inverno, e marca a transição para o início da primavera. A cerejeira é a flor mais comumente associada à primavera. A glicínia, também uma flor de primavera, é, além disso, associada à capital e à aristocracia, devido à cor roxa de suas flores. O par cuco-laranjeira é ainda mais interessante: um poema do Man’yôshû pede que o cuco não comece a cantar enquanto a tachibana não der frutos, ou seja, antes que comece o verão (SHIRANE, 2012b). A pereira floresce na mesma época que a tachibana. A paulóvnia também floresce no verão, assim como a flor do cinamomo, associada a uma data festiva que era comemorada no quinto dia do quinto mês (o “festival do íris aromático”).

A progressão é interessante: ameixeira / cerejeira / glicínia / cuco-tachibana; seguidos por pereira / paulóvnia / cinamomo. A primeira “metade do texto” lista as flores e um dos pássaros mais fortemente associados à poesia, todos descritos com expressões positivas. A “segunda metade” discute o status de três árvores, por assim dizer, “problemáticas”: a flor da pereira é feia; a folha da paulóvnia é grande demais; e a do cinamomo parece meio ressequida. Todas elas se redimem, no entanto, por um aspecto positivo a ser destacado. A flor da pereira é assunto da poesia chinesa. A paulóvnia, da mesma maneira que a tachibana, é uma árvore associada a um pássaro (ainda que mitológico). Além disso, a paulóvnia serve para a confecção de instrumentos musicais. Por último, a flor do cinamomo é indispensável no calendário dos eventos da corte imperial.

Aliás, todas as sete árvores são, de uma forma ou outra, associadas à vida no palácio: as primeiras três não podem faltar nos jardins do imperador; um pé de cerejeira e outro de tachibana, considerados sagrados, flanqueiam a entrada principal do pavilhão do imperador em Quioto (na Era Heian e ainda hoje); a pereira e a paulóvnia estão de alguma forma associadas à figura do imperador da China; e, por último, o cinamomo, que, apesar de ser a árvore da lista que menos chama a atenção, é elevado de seu lugar humilde por ocasião de um importante evento imperial.

O trecho tem um movimento de diminuendo, começando com as flores mais exaltadas (e com um maior número de poemas escritos sobre elas em japonês), chegando a um clímax na descrição — poética e que faz alusão à poesia — do casal cuco-tachibana. Em seguida, há duas alusões à cultura da China (o poema de Bai Juyi e a fênix), que vindo depois das flores preferidas por Sei Shônagon, se encontram numa posição de menor importância (poema japonês > poema chinês). Por último, uma flor “humilde” fecha a lista, valorizada de alguma forma por suas associações com o calendário da corte.

Pigeot (1990, p.112) afirma que grande parte das listas wa é inspirada em obras como o Shinsen Jikyô ou o Wamyô Ruijishô, “o mais antigo dicionário chinês-japonês, publicado no Japão por volta de 934” (FRÉDÉRIC, 2008, p. 1245). Uma das versões deste último está dividida em 24 categorias: o universo; as pessoas; a aparência; as doenças; artes e ofícios; os prédios; barcos e carros; tesouros; tecidos; roupas; bebida e comida; louças e vasilhas; lâmpadas e luminárias; ferramentas; animais alados; animais de pelo; vacas e bois; dragões e peixes; tartarugas e moluscos; insetos e bichinhos; cereais; verduras; melões e frutas; e plantas (BAILEY, 1960, p. 18–19).

Essas obras, por sua vez, se baseiam em divisões por categorias que remontam à cultura letrada chinesa, tal como ela foi codificada em obras como o Ěryǎ. No entanto, essas categorias temáticas e lexicais são utilizadas por Sei Shônagon para realizar um tipo diferente de jogo. Em primeiro lugar, porque ela “escamoteia a tendência à exaustividade que caracteriza a lista didática” (PIGEOT, 1990, p.112). A autora seleciona os itens de suas enumerações a partir de ideais estéticos, como wokashi ou aware, e “o conteúdo das listas mostra que é melhor interpretar a sua abrangência como restrita — ler, por trás de ‘Montanhas’: ‘Montanhas que me atraem, me encantam ou divertem devido à sua forma, nome, etc.’” (PIGEOT, 1990, p.112). Essa maneira de redigir a lista não pode ser considerada como científica nem como didática.

Primeira página do índice de uma cópia do fim da Era Edo do Shinsen Jikyô, um dicionário de kanji compilado no final do século X. Os primeiros sete caracteres são: “céu”, “sol”, “lua”, “carne”, “chuva”, “vento” e “fogo”. “Cavalo” aparece na posição 42.

Algumas listas da autora não seriam classificadas como listas em um contexto ocidental. Por exemplo, quando a lista tem um item:

Gatos. Os que têm as costas pretas e a barriga bem branquinha.

SEI, 1997, p.109, fragmento 50; minha tradução

Trata-se de outro tipo de lista: nesse caso, Sei Shônagon está determinando quais são os melhores representantes de uma dada categoria (“Se você inventar de ter um gato, é bom que seja preto e branco”). E, como se trata de um caso em que apenas uma apresentação é aceitável (“Fora essa, a categoria gato não oferece nenhuma outra possibilidade de excelência”), então a lista tem apenas um item. Sobre essa questão, Pigeot se interroga sobre o que ela considera um “problema de método”: “qual é o número mínimo de unidades para que se possa falar de enumeração, de lista?” (PIGEOT, 1990, p.113). Esse tipo de rol de um só item lembra ainda, guardadas as diferenças, textos que usam um intertítulo para designar um conjunto vazio, como o famoso “Capítulo sobre cobras” da História Natural da Islândia, que se resumia a informar que nessa ilha não há nenhum espécime do animal, ou ainda o célebre Capítulo CXXXIX de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que trata do assunto “De como não fui ministro de estado” (ASSIS, 1881, p.349).

Uma das características de Memórias Póstumas de Brás Cubas é a experimentação formal com os intertítulos. A maneira como Machado de Assis divide os capítulos está associada a um fino senso de humor, que não soaria estranho a Sei Shônagon. Alguns capítulos são muito curtos, com apenas uma reflexão, frase ou parágrafo. Aqui, pode-se ver como se apresentava o Capítulo CXXXIX na primeira edição da obra: a página possui um apelo visual que dialoga mesmo com a poesia concretista.

Que a obra de Sei Shônagon tenha finalmente adotado o título de Makura no Sôshi vem reforçar essa característica, pois um dos referentes que o sôshi pode designar é o caderno costurado, composto de folhas inicialmente avulsas, e que foram reunidas por sua proprietária em um conjunto. Esse conjunto pode, a priori, não ser resultado de um projeto coerente; no entanto, quando costuradas juntas, essas folhas passam a ter um padrão determinado pela autora que as colecionou.

Questão de leitura, um olho clássico ou pré-moderno não enxerga nesse padrão uma ordem digna de ser caracterizada como autoral — e muito menos como sistemática. Por sua vez, um olho modernista pode interpretar a “bela desordem” das folhas como uma reação aos ideais clássicos de estrutura, de progressão lógica ou de harmonia — quando, na verdade, a aparente desorganização do texto de Sei Shônagon pode não ser uma reação a tradições anteriores, e sim resultado de uma maneira orgânica (e, na sua época, tradicional) de se reunir e produzir textos. Por fim, para grande parte da literatura pós-moderna que se produz hoje, a criação do artefato-livro a partir de elementos heterogêneos, obedecendo a uma lógica não linear, com hibridismo de gêneros e pluralidade de vozes, é o modelo mais comum — mais ainda, é o modelo que permite, com mais facilidade, neste momento histórico em que eu escrevo este texto, a criação de obras complexas, que ponham diferentes sujeitos em diálogo, aumentando assim o valor e o poder de expressão de um conteúdo que, se tratado linearmente, correria o risco de ser desinteressante, ou de reforçar a legitimidade de uma ordem política antiquada.

Nenhuma dessas leituras, no entanto, é a “mais correta” ou a “verdadeira” leitura do texto. Alguns elementos podem ser refutados se usarmos, como Gadamer (1997), uma ideia virtual do texto tal como ele era lido pelos antigos, contemporâneos da sua escritura. A antiguidade do texto torna fútil a própria ideia de que ele seja um clássico — ele não era um clássico para seus contemporâneos, e tampouco foi composto a partir de uma ideia de sublime ou de belo que permita afirmar, hoje, que ele pertencia a uma categoria designada como a alta literatura de sua época (ao contrário, por exemplo, do Kokin’wakashû, que se pretendia uma seleção oficial, com prerrogativas quase religiosas, daquilo que de melhor fora feito até então).

Este texto é um excerto de um artigo que eu publiquei em 2017. Referência: CUNHA, Andrei. O Empório e a Enciclopédia: uma abordagem comparatista da enumeração caótica em Sei Shônagon e Jorge Luis Borges. CERRADOS, v. 25, p. 6-29, 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/35431137/O_Emp%C3%B3rio_e_a_Enciclop%C3%A9dia_uma_abordagem_comparatista_da_enumera%C3%A7%C3%A3o_ca%C3%B3tica_em_Sei_Sh%C3%B4nagon_e_Jorge_Luis_Borges>. Acesso em: 12 set. 2021.

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Olimpíadas da Idade da Pedra

Poema de Tawada Yôko

Tradução para o alemão: Peter Pörtner
Tradução para o português: Andrei Cunha, Marianna Daudt e Michelle Buss

石器時代のオリンピック

臆病者のマンモスが
現実の中に身を隠す
もう七日も前から
夜空は不眠症の太陽を飲み込んだまま
べんぴしている
この暗さでは選手たちも遅刻ですね
目のない川をしどろもどろに泳いでくる
たこ、くらげ、プランクトン
夢の会社のセールスマンたら
近づくほど小さく見える
みんなさん、もう遅すぎます
マンモスが腕時計を見て告げる
金属の誕生を予感した稲妻がばりばりはじける
空から乳歯が降ってくる
つるくさはびこりけだものほえる原始の森に
寝台特急到着した
遅刻してきたシュ―ルレアリスト
おやすみなさいが出会いの挨拶で
寝巻き姿で
走り高跳びの練習をする
妹の腹そっくりのふくよかな大地を蹴って
でも
跳び上がる度につくるしかめつらは
やっぱりスポーツ選手か天才詩人と似てしまう
稲妻に亀をかざして
ひびわれた法を読む
削るのでなく溶かすのだ
石の時代は終わった
火よ
まじりけのないプラスチック のために
はらんだ妹のおへそから炎が吹き上がると
氷河時代の目覚まし時計が溶け鳴りだし
原子カ発電所の中から
腐った太陽が転がり出てくる
(より強く、より高く!)
朝日の織り込まれた小川を
流れていくビニール袋
に入った胎児の死骸
が水泳競技では優勝した
はばたく亀をいかけて
うさぎが走る
ガラスの卵を抱えて走る
転ぶ度に卵は割れて
代わりの卵が口から飛び出す
赤く濡れた卵
妊娠しやすい走り方
チョコレート工場 のべルトコンべアの上を走る
長距離走では
復活祭のうさぎが優勝した
(より遠く、より多く!)
電話帳 を山済みにした乳母車
を押しながら師(グル)たちが走る
ジョギングスーツを着た無意識たちが走る
パイプを 薫らしながら
消防夫たちが走る
薫える妹に水をかけるために
もう遅すぎます
とマンモスが告げた
空 中競技では
灰になって飛び散った妹が優勝した

Olimpíadas da Idade da Pedra

o mamute covarde
esconde-se na realidade
há mais de sete dias
o céu noturno sofre
de prisão de ventre
porque engoliu o sol insone
com o céu tão escuro
os atletas se atrasaram
nadam à deriva no rio sem olhos
polvo, água-viva e plâncton
os caixeiros viajantes da empresa de sonhos
quanto mais se aproximam menores parecem
senhoras e senhores, é tarde demais!
anuncia o mamute ao olhar
o relógio de pulso
estouram vibrantes os relâmpagos
prenunciando o nascimento dos metais
dentes-de-leite chovem dos céus
na floresta primitiva onde videiras crescem e feras rugem
chegou o trem noturno
um surrealista atrasado
deseja um “bom descanso” a todos
e treina de pijama
salto em altura chuta
a Terra tão redonda quanto o ventre da irmã
no entanto
a cada salto nas alturas ele faz uma careta e pensa
“os atletas parecem gênios da poesia”
segura a tartaruga diante do rosto para se proteger do relâmpago
nas rachaduras de seu casco se lê o texto da lei
não mais lascar, fundir!
é o fim da idade da pedra
fogo!
devido ao plástico imaculado
saltam chamas do umbigo da irmã grávida
que descongelam a era glacial e derretem o despertador que começa a tocar
de dentro da usina nuclear
vem rolando um sol podre
(mais forte! mais alto!)
em uma competição de natação
de fetos mortos em sacolas plásticas
na superfície do rio tecida pela luz matinal
um dos fetos vence
o coelho corre
e ultrapassa a tartaruga alada
o coelho corre
agarrado ao ovo de vidro
cada vez que ele tropeça o ovo racha
cada vez que racha um ovo
salta de dentro da sua boca um novo
ovo vermelho e úmido
é fácil engravidar assim correndo
o coelho da páscoa adentra a fábrica de chocolates
e na esteira da linha de produção corre
vence mais essa competição
de corrida de longa distância
(mais! e mais rápido!)
os gurus empurrando pilhas de listas telefônicas
em carrinhos de bebê correm
os inconscientes em trajes esportivos correm
os bombeiros fumando cachimbos correm
e jogam água na irmã em chamas
mas já é tarde… é tarde demais…
anunciou o mamute
vence a corrida aérea
a irmã pulverizada em cinzas

Olympische Spiele der Steinzeit

Das Mammut (der Feigling)
versteckt sich im Realen
sieben Tage schon leidet der Nachthimmel
an Verstopfung
seit er die von Schlaflosigkeit gequälte
Sonne verschluckt hat
die Olympioniken verspäten sich
(wegen der Dunkelheit)
ziellos schwimmen im blinden Fluss
Oktopus, Qualle und Plankton
die Handlungsreisenden der Traumfirma
sehen kleiner aus je näher sie kommen
es ist schon zu spät! gibt das Mammut
nach einem Blick
auf die Armbanduhr bekannt
klirrend zerplatzt ein Blitz
der die Geburt des Metalls vorhergesehen hatte
Milchzähne regnen vom Himmel
im Urwald
wo Schlinggewächse wuchern
und Bestien brüllen
ist der Schlafwagenexpress eingetroffen
der verspätete Surrealist absolviert
im Nachthemd sein Lauf- und Sprungtraining
er begrüßt jeden mit: Ruhen Sie wohl!
und tritt den Bauch der Erde
(so schön rund wie der seiner Schwester)
bei jedem Sprung in die Höhe aber
verrät sein vom Ernst verzerrtes Gesicht
doch den Sportler oder das Genie
sie halten die Schildkröte unter den Blitz
und lesen das Craquelé der Gesetze:
nicht schlagen sondern schmelzen
vor dem makellosen Plastik, Feuer
zog sich die Steinzeit zurück
wenn aus dem Nabel der
schwangeren Schwester Funken sprühen
taut der Eiszeitwecker auf
und läutet
eine verfaulte Sonne rollt
aus dem Atomkraftwerk
(Stärker! Höher!)
im Schwimmwettbewerb siegte
der tote Embryo im Kunststoffsack
der auf Gewebe aus Morgenlicht
den kleinen Fluss herab getrieben kam
das Kaninchen bedrängt im Lauf
die flügelschlagende Schildkröte
immer wenn es fällt zerbricht das gläserne
Ei das es in seinen Händen
trägt aber dann kommt ein neues
Ei aus seinem Mund
herausgesprungen ein rotes feuchtes
Ei (eine Laufart bei der man
leicht
schwanger wird)
beim Langstreckenlauf auf dem Fließband
der Schokoladenfabrik
siegte der Osterhase
(Schneller! Mehr!)
die Gurus schieben im Lauf Berge
von Telefonbüchern im Kinderwagen vor sich her
die Unbewussten keuchen im Joggingdress
die Feuerwehrleute (sie wollen die brennende
Schwester löschen) saugen im Trab
an den Schläuchen der Wasserpfeifen
es ist zu spät! gab das Mammut bekannt
deshalb siegte im Luftwettkampf
die zu Asche versprühte Schwester

Exofonia do hóspede: poemas de Tawada Yôko

DAUDT, M. I.; CUNHA, A. dos S.; BUSS, M. C. Exofonia do hóspede: poemas de Tawada Yôko. Remate de Males, Campinas, SP, v. 38, n. 2, p. 791–826, 2018. DOI: 10.20396/remate.v38i2.8652372.

A literatura e o culto à natureza no Japão

Kawase Hasui, “Futamigaura” (1933). “Casal de Rochas” (meotoiwa, 夫婦岩), costa de Futami, província de Mie, Japão. Note a gigantesca corda que liga as duas pedras em matrimônio e o portal xintoísta no topo da pedra masculina, um sinal de que se trata de um local sagrado.

Não se trata aqui de defender a ideia de que haveria um nexo causal entre, de um lado, uma literatura (uma cultura) que tradicionalmente dá centralidade ao tema da natureza e, de outro, o surgimento de uma consciência nacional da necessidade da preservação do meio ambiente, o que resultaria — levando mais adiante o raciocínio — em atitudes comunitárias de maior respeito aos seres vivos e ao planeta terra.

No entanto, essa noção é bastante corriqueira. Em visita ao Japão, o antropólogo Claude Lévi-Strauss levou na mala o pressuposto de que, sendo a arte de lá tão voltada a temas relacionados à natureza, os japoneses teriam especial respeito pelo meio ambiente (em oposição aos ocidentais, destruidores do planeta). Eis o relato do ajuste que teve de fazer in loco:

A relação do homem com a natureza que, ao pensar no Japão antes de visitá-lo, eu idealizara um pouco demais, me reservava outras surpresas. Viajando pelo país, percebi que o culto das belezas naturais, ilustrado, aos olhos do Ocidente, por seus maravilhosos jardins, pelo amor às cerejeiras em flor, pela arte floral e até mesmo pela cozinha, podia se acomodar com uma extrema brutalidade diante do meio natural.

Lévi-Strauss, 2012, p. 99; tradução de Rosa Freire d’Aguiar

E de fato, se há traço marcante da experiência de ser estrangeiro no Japão, é a surpresa de encontrar o double standard (expressão de Lévi-Strauss que poderia ser traduzida como “dois pesos, duas medidas”) aplicado a inúmeras áreas da atividade humana: o novíssimo convivendo com o arcaico (na tecnologia, na arquitetura); um forte senso de comunidade, igualdade e democracia que não faz objeção ao culto do aristocrático, da hierarquia ou da figura do Imperador; o sincretismo religioso que permite aos japoneses serem budistas, xintoístas e agnósticos ao mesmo tempo, sem conflitos espirituais; e a idealização da natureza, concomitante à sua esporádica destruição sem remorso.

Antes de prosseguir, talvez fosse útil eu explicitar a minha definição operacional de “natureza” para o presente texto. Não se trata da natureza do biólogo, na qual está inserida também a espécie humana, sua fisiologia e suas atividades. Utilizo aqui o conceito de Soper (apud Shirane, 2012) de “entendimento leigo da definição de natureza”, segundo o qual a palavra seria

usada em referência a elementos comumente observáveis no mundo: o ambiente natural (oposto ao urbano e ao industrial: paisagens, áreas não-cultivadas, o campo, o rural), animais (domésticos e silvestres), a materialidade do corpo no espaço e as matérias primas.

Shirane, 2012; minha tradução

A definição precisa ser adaptada ao contexto japonês e levar em conta a dimensão diacrônica. Em primeiro lugar, a agricultura tradicional pode ser considerada como parte da natureza, mas as monoculturas de grande escala que fazem uso de pesticidas, não. O mesmo vale para separamos a pesca artesanal da de navios pesqueiros. A jardinagem, tal como desenvolvida no Japão, é uma arte e uma técnica (paisagismo, feng shui, etc.), e entra antes na categoria de representações da natureza, não no reino do natural. A essa atividade vêm se somar outras artes tradicionais japonesas, como o bonsai (盆栽, cultivo de árvores anãs), o ikebana (生け花, arte do arranjo floral) e a gastronomia, que, ainda que façam uso de matérias-primas naturais, são produtos culturais e representacionais.

É claro que essa delimitação tem problemas e “zonas cinza”. Até onde podemos dizer que a paisagem japonesa é natural, após mais de um milênio de seleção humana de espécies? O rural pode realmente ser considerado como “natural”? A materialidade do corpo humano existe sem cultura que a defina? Isso posto, existe algum fenômeno natural que seja observado pelo humano sem a contaminação do cultural? Poderíamos exemplificar citando a lua, que, para um japonês, tem conotações diferentes das que possui para um brasileiro (Shimon, 2002); ou o sapo, considerado repulsivo e indesejável aqui, e grande cantor e um deus benéfico no Japão. Esses elementos (sapo e lua) não são nunca “apenas um animal”, ou “apenas um corpo celeste”: eles têm sempre uma camada de cultura que os impede de serem totalmente naturais.

É importante diferenciar também, no caso japonês, as catástrofes naturais e as de origem humana. Podemos nos basear nos escritos de Kamo no Chômei (século XII) para o levantamento de uma lista tradicional de catástrofes: tornados, tufões e tempestades, de um lado; e terremotos, de outro, seriam dois tipos de catástrofes naturais. A fome e os incêndios podem entrar na categoria intermediária de tragédias humanas que se devem a fatores naturais. Por último, a tirania dos governantes é uma catástrofe social. Kamo no Chômei não menciona, mas poderíamos acrescentar a esse rol, a guerra, como catástrofe humana; as pestes e epidemias, como catástrofes híbridas (humanas e naturais, ao mesmo tempo); e as enchentes, os tsunami (津波, maremotos) e as erupções de vulcões como fenômenos naturais que ocorrem esporadicamente em território japonês. Modernamente, vêm se somar a essas forças destruidoras o desmatamento, a poluição e os acidentes nucleares (catástrofes humanas).

A ambivalência da cultura do Japão frente a uma natureza que pode tanto gerar a catástrofe como o belo é o tema daquela que talvez seja a mais conhecida obra de arte japonesa: “A grande onda de Kanagawa” (神奈川沖浪裏, Kanagawa oki nami ura), de Katsushika Hokusai (1831).

“A grande onda de Kanagawa”, de Katsushika Hokusai (1831), talvez a mais conhecida obra pictórica japonesa.

Sobre essa obra, afirma Edmond de Goncourt (um dos primeiros críticos de arte do Ocidente a reconhecerem a importância da pintura japonesa) que se trata de uma

representação um pouco divinizada de uma onda, composta por Hokusai sob o efeito do terror religioso do medonho mar que circunda toda a sua pátria: desenho que nos mostra a cólera do vagalhão subindo ao céu, o azul profundo do interior transparente de sua curva, e o rasgo de sua crista que se espalha em uma chuva de gotículas, com a forma de garras de animais.

Goncourt, 2006; minha tradução; o texto é de 1892

Embora carregada do melodrama característico de um autor ocidental de sua época, a descrição de Goncourt penetra corretamente no fundo religioso, e enxerga a importância da presença do mar para um artista japonês. Faltaria apenas fazer referência à miniaturização das figuras humanas diante da imensidão das forças da natureza, e a interessante brincadeira com o contorno do Fuji (que, até o século XVIII, era um vulcão em atividade), repetido pelo próprio desenho da onda em escala maior, como que a advertir que o tamanho da catástrofe depende principalmente da proximidade da vítima.

Desde a pré-história, surge, no arquipélago japonês, a crença de que os elementos naturais — as montanhas, os rios, os fenômenos meteorológicos, as pedras, as árvores e os animais — possuem um espírito. Essas crenças se consolidaram posteriormente na religião xintoísta, que, juntamente com o budismo, forma o binômio sincretista da religião japonesa.

Ainda hoje, muitos deuses desse culto são elementos da natureza. Por exemplo, na costa da província de Mie, há ainda hoje um “casal de rochas” (meotoiwa, 夫婦岩), que representaria os deuses Izanami e Izanagi (o par que dá origem aos outros deuses, segundo o Kojiki).

Durante a transição entre os períodos Jômon e Yayoi (3000 a.C.), os japoneses passaram do modelo caça-pesca-coleta para o estágio da sociedade agrária. Essa mudança exigia que as florestas e montanhas fossem transformadas em propriedades produtivas. No processo de conversão da natureza em ordenados campos de arroz, houve desmatamento, derrubada de árvores centenárias, e matança de animais. Nesse momento histórico, fortaleceram-se as crenças de que a natureza selvagem abrigava deuses violentos, que representavam os perigos das cheias e das intempéries, numa sociedade que já dependia totalmente da produção agrária.

Susanoo, o deus que combate as forças da natureza, era associado à organização social e política da sociedade Yamato, necessária para a construção de barragens e canais, destinados a conterem as águas e enchentes (Shirane, 2012). No período seguinte, ocorre uma mudança importante nas atitudes religiosas com relação à natureza. Os deuses violentos são associados ao plantio do arroz, tornando-se deuses benfazejos, que protegem a lavoura. A religião passa a ser um culto dos ciclos da natureza, que devem ser observados para a prática da agricultura. Nota-se a transição de uma concepção da natureza como sendo hostil para uma natureza domesticada e benigna.

Aqui se consolidam os dois modos de estilização da natureza: o aristocrático e o rural. Nas narrativas setsuwa (contos populares) que, ainda que redigidas por membros da aristocracia, têm sua origem em tradições orais dos habitantes das aldeias, encontramos “cães, lobos, castores, guaxinins, raposas, gatos, tigres, ursos, vacas, veados, javalis, ovelhas, momonga [esquilos voadores], ratos, coelhos, macacos e até mesmo elefantes”. Essa sensibilidade se opõe à da literatura aristocrática, cuja fauna “se resume a insetos, pássaros, veados e gatos”. Trata-se de uma natureza estilizada, elegante, que privilegia a “harmonia entre a esfera do natural e a do humano, com as duas esferas se tornando uma metáfora uma da outra” (Shirane, 2012).

O gosto aristocrático privilegia as estações amenas: o outono ou a primavera. Por contraste, os contos populares, longe da concepção estilizada da mudança de estações, retratam catástrofes, furacões, enchentes. Pode-se dizer, portanto, que a arte e a literatura japonesas retratam a natureza ora como fonte de medo e incerteza, ora como retrato domesticado de um mundo belo e sutil. Essa dicotomia vem, de um lado, da experiência da catástrofe, e, de outro, de um desejo de suavização das arestas do mundo, desejo que foi associado historicamente à aristocracia e ao gosto artístico dos poderosos.

La nature au second degré

Os japoneses têm uma relação bastante intensa com a natureza e o ciclo das quatro estações, não apenas no domínio da arte e da literatura, como no da gastronomia, da moda, dos bens de consumo e dos meios de comunicação de massa. O serviço de previsão do tempo, nos jornais e canais de televisão do Japão, inclui, no outono, o prognóstico do dia do mês em que as folhas tingidas de vermelho vão aparecer em cada cidade; na primavera, os locutores de jornais televisivos fornecem informações sobre onde e quando as cerejeiras vão florir.

As paisagens famosas e pontos turísticos também refletem o ciclo das estações, com lugares célebres pela floração de suas árvores, e outros pelo colorido de suas folhas outonais. É interessante observar também que a mudança das estações no Japão está incorporada à maneira como a nação dá conta de si mesma. A previsão do tempo é uma narrativa de unificação nacional, da mesma maneira que o futebol no Brasil. É uma experiência orquestrada pela mídia para tomar o país inteiro de assalto, como se o cor de rosa das flores neutralizasse as diferenças regionais.

O amor dos japoneses pela cerejeira é literalmente milenar. Shirane Haruo (2012) estabelece a seguinte cronologia para o culto dessa flor:

No Man’yôshû [万葉集, antologia poética que inclui textos dos séculos V ao VIII], a palavra “flor” (花, hana) se refere a um amplo espectro de diferentes espécies de plantas e árvores floríferas. A flor mais popular era a da ameixeira do Japão (Prunus mume, 梅, ume); a cerejeira (Prunus serrulata, 桜, sakura) vinha em segundo lugar. Na Era Heian [séculos VIII a XII], ao contrário, as principais flores da primavera passaram a ser a cerejeira, e ameixeira e a rosinha da montanha (Kerria japonica, 山吹, yamabuki). No Kokin’wakashû [古今和歌集, antologia poética que inclui textos dos séculos VIII ao X], a palavra “flor” se refere primariamente à flor de cerejeira, o que indicaria que esta se havia tornado a flor suprema da primavera.

Shirane, 2012; minha tradução

Eis um exemplo do Kokin’wakashû, de autoria da poeta Ono no Komachi (825? – 900?):

hana no iro wa / utsuri ni keri na / itazura ni 
waga mi yo ni furu / nagame seshi ma ni 

花の色は 移りにけりな いたづらに 
我身世にふる ながめせしまに 

a flor da cerejeira
perdeu sua cor em
vão minha juventude
passou enquanto eu
distraída olhava a chuva

Ono no Komachi. Kokin’wakashû, v. 2, “Primavera II”, 113

Este waka (poema japonês de 5 versos) emprega várias palavras com duplo significado, expressando diferentes pensamentos, sejam subjetivos e emocionais, sejam objetivos e descritivos: nagame (“chuva contínua; contemplar, mergulhar em reflexão”); furu (“decorrer do tempo; chover; envelhecer”). Além disso, a “mudança das cores da cerejeira” é uma metáfora do “declínio da beleza de uma mulher”. O poema pode ser descrito como uma reflexão sobre a transitoriedade da existência humana.

Poemas do Japão antigo — seleções do Kokin’wakashû

Seleção de 165 poemas do Kokin’wakashû, a primeira antologia poética japonesa realizada por ordem imperial (séc. X). 

CUNHA, Andrei. Poemas do Japão antigo: seleções do Kokin’wakashû. Porto Alegre: Bestiário/Class, 2020.

A cerejeira é um aglomerado de metáforas associadas. Em Tóquio, as árvores florescem na última semana de março, ou na primeira de abril, deixando o inverno definitivamente para trás e celebrando a primavera. Nesse sentido, a flor de cerejeira é um (re)começo, clichê permanente de discursos de diretores de escola e reitores, saudando os alunos na volta às aulas. O cor de rosa desmaiado das flores pode fazer referência ao sexo ou ao erotismo; à beleza da juventude; à suntuosidade da Capital Imperial. Assim como florescem em uníssono, elas fenecem em poucos dias, chuva rosada caindo ao chão. Alguns poemas fazem alusão à semelhança entre a queda de pétalas e a neve (pureza). O curto espaço de tempo em que permanecem floridas tem conotações budistas, e fala da efemeridade da juventude, da beleza, da glória, da vida, do dinheiro, do luxo e das pretensões humanas: as flores que caem são um sic transit gloria mundi, um vanitas vanitatis e um memento mori (e um et in Arcadia ego). O esplendor das flores pode também ser associado à virtude sem artifícios do samurai, e à disposição do soldado em morrer jovem, no calor da batalha, sem perder a beleza de sua retidão moral (por exemplo, os kamikaze, durante a Guerra do Pacífico).

A metáfora sobreviveu até a pós-modernidade, e reaparece, por exemplo, em Norwegian Wood (1987), de Murakami Haruki (1949 – ). Aqui temos um exemplo de associação entre a flor e a morte:

Passei o dia inteiro na varanda encostado em uma pilastra, contemplando o jardim […]. Continuei a admirar as flores de cerejeira. Na penumbra primaveril, as flores pareciam uma carne viva irrompendo de uma ferida infeccionada. O jardim se enchia do aroma putrefato, doce e pesado, daquela carne podre. […] Entrei no quarto e fechei as cortinas, mas o aroma da primavera já havia impregnado todo o ambiente. O aroma invadia tudo sobre a terra. Mas a única coisa que ele me trazia à mente era um odor pútrido. Dentro do quarto, com todas as cortinas fechadas, odiei mortalmente a primavera.

Murakami, p. 301; tradução de Jefferson José Teixeira

Toru, o narrador de Norwegian Wood, é um descendente pós-moderno do Genji (personagem central do romance de Murasaki Shikibu, escrito no século XI). Este “irootoko que gosta de Beatles” expressa, aqui, o sentimento de mononoaware [もののあはれ, “emoção (que sentimos ao nos depararmos com a transitoriedade) das coisas”]. Às vezes traduzido como pathos, esse conceito central às artes japonesas tem forte influência budista e se refere à beleza no fluir do tempo. Trata-se de uma consciência da fugacidade e impermanência desta vida, um sentimento de piedade universal, que se tornará o principal conceito estético e visão de mundo do século XI, sobretudo a partir de O Romance do Genji.

Assim como a flor de cerejeira, muitas outras metáforas fundamentais da poética japonesa fazem uso de elementos naturais. O “Prefácio” do Kokin’wakashû (?913), de autoria de Ki no Tsurayuki (872 – 945), que procura definir o gênero literário da poesia lírica, inicia assim:

やまとうたは、人の心を種として、万の言の葉とぞなれりける。世の中にある人、ことわざ繁きものなれば、心に思ふことを、見るもの聞くものにつけて、言ひ出せるなり。花に鳴く鴬、水に住む蛙の声を聞けば、生きとし生けるもの、いづれか歌を詠まざりける。力をも入れずして天地を動かし、目に見えぬ鬼神をもあはれと思はせ、男女の中をも和らげ、猛き武士の心をも慰むるは歌なり。

A poesia japonesa brota do coração humano, que é a sua semente, e suas folhas crescem como dez mil palavras. Neste mundo, as pessoas têm muitos interesses diferentes, e aquilo que pensam em seu coração, expressam em poesia, quando falam sobre as coisas que viram e escutaram. Basta ouvir o rouxinol do Japão, que canta em meio às flores, ou a voz do sapo que vive na água, para entender que todos os seres vivos produzem algum tipo de poesia. A poesia é aquilo que, sem esforço, move o céu e a terra e emociona até os ogros e deuses que nossos olhos não podem ver. Ela harmoniza as relações entre homem e mulher e consola mesmo o coração de ferozes guerreiros.

Ki, apud Ozawa, 2000; minha tradução

Pode-se notar aqui uma deliberada confusão entre o mundo humano, o dos animais, o das plantas e mesmo o mundo sobrenatural: todos pertencem ao mesmo continuum e produzem (ou são sensíveis à) poesia (Miner, 1990, p. 84). A poesia é um “canto”, como as vozes dos bichos, e a composição de poesia seria algo “natural” para os humanos. O sapo e o rouxinol (o rouxinol do Japão, ugúisu, Cettia diphone) são tópicos consagrados da poesia clássica, e considerados como possuidores de “belas vozes”. O prefácio de Ki no Tsurayuki enfatiza o papel central da natureza, tanto como estímulo para a criação de poesia, como quando afirma que a poesia é uma forma de expressão natural ao ser humano. Segundo Madalena Hashimoto:

Cultiva-se uma poesia (ka) que tematiza o sentimento do homem (jo) em relação à natureza (kei): jokeika [叙景歌]. […] [O Kokin’wakashû], em vinte volumes, tem seis deles classificados conforme as estações, as quais também aparecem nos poemas amorosos; perfazem-se, portanto, em mais da metade, as tópicas de elementos da natureza relacionadas às estações, como, por exemplo, os setsugekka (雪月花, “neve-lua-flor”), ou kachô-fûgetsu (花鳥風月, “flor-pássaro-vento-lua”).

Hashimoto, 2002, p. 47

No século XII, baseando-se na concepção de Ki no Tsurayuki, o poeta Fujiwara no Shunzei (1114 – 1204) estabeleceu um importante modelo cognitivo e intertextual, segundo o qual a poesia sobre a natureza é importante para a apreciação da natureza. Esse modelo soa bastante moderno: seriam a arte e a linguagem as responsáveis por nossas percepções e emoções com relação à natureza? Para os poetas do período clássico japonês, a poesia seria a cultura necessária para essa apreciação.

 No entanto, se, por um lado, a poesia aristocrática valorizava a natureza como tema, também é verdade que, na Era Heian, os nobres não saíam quase nunca de casa. O contato com a natureza não era direto, e se dava por meio dos jardins dos palácios, ou por meio de pinturas, desenhos, poemas e relatos. Ou seja, a “natureza”, na vida dos nobres do período clássico, se encontrava em toda parte, tanto espacial como psicologicamente, mas se tratava em grande parte de uma natureza reconstruída.

Trata-se de um fenômeno que Shirane Haruo (2012) denomina de nijiteki shizen (二次的自然), ou “natureza secundária”: a natureza “não era vista como algo oposto ao mundo humano, e sim como uma extensão dessa esfera”. Essa “natureza secundária” foi um fator decisivo na construção do imaginário e da estética dos japoneses; a “ênfase não está em como a natureza é, e sim em como ela deveria ser: graciosa e elegante”. A tão difundida noção de que os japoneses são um povo em harmonia com a natureza se deve à criação dessa “natureza secundária”, que na verdade é uma temática literária e artística para expressão de sentimentos e para reforçar um ideal de ausência de conflitos e de beleza elegante.

Sei Shônagon (séculos IX – X) é uma das mais importantes vozes do processo histórico de estabelecimento da estética da “natureza secundária”. Eis a primeira página de seu O Livro de Travesseiro:

春は、あけぼの。やうやう白くなりゆく、山ぎは少し明かりて、紫だちたる雲の細くたなびきたる。夏は、夜。月のころはさらなり、闇もなほ、蛍の多く飛びちがひたる。また、ただ一つ二つなど、ほのかにうち光りて行くもをかし。雨など降るもをかし。秋は、夕暮れ。夕日のさして山の端いと近うなりたるに、烏の寝どころへ行くとて、三つ四つ、二つ三つなど、飛び急ぐさへあはれなり。まいて雁などの連ねたるが、いと小さく見ゆるは、いとをかし。日入り果てて、風の音、虫の音など、はた言ふべきにあらず。冬は、つとめて。雪の降りたるは、言ふべきにもあらず、霜のいと白きも、また、さらでもいと寒きに、火など急ぎおこして、炭持て渡るも、いとつきづきし。昼になりて、ぬるくゆるびもていけば、火桶の火も白き灰がちになりてわろし。

             Na primavera, o amanhecer. As bordas das montanhas que, lentas, vão clareando, o céu que se ilumina, e as nuvens, violetas, finas, deslizando sobre os cumes.

             No verão, a noite. Com lua, claro, mas também no escuro, quando os vaga-lumes voam, desordenados; ou só um, ou dois, ou mais, brilham leves; ou quando chove, é tão bonito.

             No outono, o entardecer. Quando o sol se põe, brilhando perto das encostas, e, de três ou quatro, ou de dois ou três, os corvos passam, voando apressados de volta ao ninho, é tão triste, e ao mesmo tempo, tão bonito. Se os gansos selvagens voam enfileirados e se veem, pequenos, ao longe, é ainda mais bonito. Quando o sol já se pôs, e se pode ouvir o som do vento e o canto dos insetos, então nem se fala.

             No inverno, as manhãs, bem cedinho. As manhãs de neve, é claro, mas também as manhãs muito brancas de geada, ou nem isso, as manhãs apenas muito frias em que os servos correm de uma peça para outra, reacendendo os braseiros e trazendo mais carvão: como a cena combina com essa época do ano! Mas lá pelo meio-dia o frio diminui, e as brasas se cobrem de cinza branca, e ninguém se importa em reavivá-las.

Sei Shônagon, O livro de travesseiro (abertura)

Madalena Hashimoto afirma que este trecho canônico é uma “reflexão profunda entre as metonímias da natureza e da cultura”. É como se a arte tivesse por missão organizar os elementos da natureza, prescrevendo, para cada estação do ano, “determinado pássaro, planta, flor, local, hora, vestuário, incenso, poema, papel, cor, música, atitude, como que numa colagem de elementos de diferentes categorias, numa elaboração de um conjunto de justaposições” (Hashimoto, 2002, p. 48). Nessa estilização, há cortes importantes e escolhas estratégicas: resta da natureza uma versão sem extremos, focando apenas nos aspectos mais suaves, harmônicos e elegantes (“poéticos”) da fruição das mudanças do meio ambiente.

Catástrofes humanas e catástrofes naturais

O Japão é a nação mais industrializada da Ásia e a terceira maior economia do mundo. Historicamente, o país fez sua revolução industrial no final do século XIX e se tornou, ao longo do século XX, em um dos maiores importadores de matérias primas e combustíveis fósseis do mundo. Um dos principais fatores por trás do envolvimento do Japão na Segunda Grande Guerra foi a percepção das lideranças políticas e militares da época, que acreditavam que o país se encontrava em um beco sem saída quanto ao fornecimento de aço e carvão, e que a solução para esse dilema seria colonizar outros países ricos em minério (Nye, 1997, p. 90-91).

Durante o período do milagre japonês, na década de 1960, a prioridade foi dada ao desenvolvimento econômico acelerado, em detrimento da preservação da qualidade do ar e da água dos rios. Até os anos 1970, muitos japoneses foram vítimas da chamada síndrome de Minamata, que causa atrofia de nervos e músculos, devido à contaminação por mercúrio (OMS, 2013). A deterioração do meio ambiente, no entanto, foi rapidamente revertida nos anos 1980, quando o governo direcionou investimentos e esforços importantes no sentido de recuperar todos os cursos d’água e a fauna e flora silvestre (Henshall, 2011, p. 254-255). Um problema que persiste é o uso abusivo de agrotóxicos, não tanto na agricultura, e sim na jardinagem, por exemplo, de gramados para a prática de esportes como o golfe, contaminando a região do entorno dos campos (World Watch, 2004).

Ainda que o sistema de coleta, separação e reciclagem do lixo no Japão seja extremamente sofisticado e eficiente, ainda há o problema da emissão de dioxina pelos incineradores (Pollack, 1997) e a questão ética por trás da “exportação de lixo” para outros países da região Ásia-Pacífico (Kakuchi, 2000). Os japoneses utilizam hashi descartáveis, que até há pouco tempo eram feitos em outros países, a partir do desmatamento não sustentável de florestas tropicais (Nuwer, 2011). Outro problema enfrentado por governos locais no Japão é a questão do lixo eletrônico, que é de mais difícil e dispendiosa reciclagem; no entanto, nessa área a legislação e a infraestrutura apresentaram visível melhora a partir dos anos 2000 (Lytle, 2003).

Existe também a questão do especismo. Ainda que a consciência ecológica e a empatia com os animais da maioria dos japoneses seja bastante pronunciada, algumas espécies de animais não se incluem nessa consciência. O caso mais conhecido é o das baleias, que são até hoje apreendidas para consumo humano, ainda que os barcos baleeiros japoneses se declarem como estações de pesquisa. Claude Lévi-Strauss afirma que é a própria “ausência de distinção nítida” entre o humano e o meio ambiente (que ele encontrou na cultura japonesa) que pode explicar também “o direito que se atribuem os japoneses […] de sacrificarem, se preciso, a natureza às necessidades” humanas. Esse “raciocínio perverso” seria utilizado, segundo o antropólogo, para justificar moralmente a pesca da baleia (Lévi-Strauss, 2012, p. 99).

Há também o terrível problema da energia nuclear. Esse fantasma surge em diversos momentos da história do país; destacarei aqui dois. Primeiro, ao final da Segunda Guerra Mundial, com o bombardeio de Hiroxima e Nagasáqui. As consequências desse ataque ainda são sentidas pelos sobreviventes, e foram instrumentalizadas pelos governos do pós-ocupação para a criação de um discurso de apelo à “paz mundial”. No entanto, raramente se dá voz às verdadeiras vítimas e, infelizmente, são poucas as tentativas de se refletir historicamente sobre qual teria sido a medida de responsabilidade das lideranças japonesas na destruição avassaladora ocasionada pela guerra no Pacífico.

Da tragédia de Hiroxima e Nagasáqui, nasceram duas obras primas do “romance de não-ficção” japonês, ambas publicadas em 1965: Chuva Negra (edição brasileira de 2011), de Ibuse Masuji (1898 – 1993) e Notas de Hiroxima (ainda sem tradução no Brasil), de Ôe Kenzaburô (1935 – ). O primeiro narra a vida e o destino de pessoas que foram contaminadas pela radiação das bombas nucleares; o segundo faz uma reflexão sobre o significado histórico e humano da tragédia, a partir dos relatos e vozes dos próprios sobreviventes. Muitos japoneses da geração de Ôe se tornaram pacifistas e se declaram radicalmente contra o uso de materiais radioativos, tanto para fins militares como “pacíficos”; a forte oposição interna, no entanto, não impediu a construção e manutenção, entre as décadas de 1950 e 2000, de cerca de cinquenta usinas nucleares em todo o território japonês.

Após o acidente de Fukushima, em 2011, iniciou-se o gradual desligamento das usinas, e desde o mês passado (outubro de 2013), a energia elétrica produzida no país é totalmente não nuclear. No entanto, a contaminação do meio ambiente persiste, e não há previsão de quando a região de Fukushima voltará a estar livre da ameaça nuclear. Além disso, a aposentadoria das usinas nucleares significou um importante aumento na emissão de gases decorrentes da queima de combustíveis fósseis (Macalister, 2013).

É um paradoxo que, por um lado, o Japão tenha assimilado o modelo desenvolvimentista das nações do Ocidente e baseado seu crescimento econômico em práticas predatórias do meio ambiente, e que, por outro lado, as filosofias tradicionais japonesas tenham servido como fonte de inspiração para pensadores ocidentais que buscaram nos conceitos do zen-budismo, por exemplo, uma base filosófica para o pensamento ecológico. O budismo é, afinal de contas, uma filosofia apropriada à crítica do antropocentrismo humanista europeu (Grapard, 1988).

No entanto, como afirmei no início do texto, não se trata aqui de achar uma relação de causa e consequência entre o culto tradicional da natureza no Japão e práticas “ecologicamente corretas”; tampouco estou sustentando que a literatura japonesa, rica em imagens de comunhão entre seres humanos e o meio ambiente, resulte, de maneira automática, em uma cultura nacional de respeito à natureza. Como vimos, as atitudes no Japão, evidenciadas em especial na prática de suas empresas e no modelo desenvolvimentista adotado por sucessivos governos, podem muito bem resultar em atividades hostis e destrutivas com relação ao planeta.

Por outro lado, Pascale Casanova afirma que os “dois universos, o ‘mundo’ e a ‘literatura’”, não são de todo “incomensuráveis” (Casanova, 2002, p. 418). Se formos adotar uma abordagem meramente descritiva dessa aparente contradição entre as atitudes e mentalidades relacionadas à natureza nos planos — distintos — da literatura e da sociedade no Japão, podemos afirmar que  “a literatura pode ser definida simultaneamente — e sem contradição — como objeto irredutível à história e como objeto histórico, mas em uma historicidade propriamente literária” (p. 420).

O movimento inverso também é possível. Raramente se consegue encontrar na literatura um espelho transparente da realidade (social, histórica, ambiental) a que ela pertence. O que passa pela conceptualização e estilização do literário adquire vida própria, a um tempo autônoma e parte integral, do mundo onde surgiu. Assim, a natureza “literária” ou “secundária” do Japão — presente em seus poemas, narrativas, ensaios — reflete a seu modo a paisagem do país e a mentalidade dos habitantes desse lugar, mesmo que ela não seja a paisagem ou o conjunto das atitudes sociais a que está atrelada. Ela pode, no entanto, resultar dessas paisagens e atitudes; e, a seu turno, ajudar a formar essas realidades.

É notória a intervenção operada pelos japoneses, ao longo dos séculos, na distribuição das espécies de árvores nas montanhas, bosques e cidades: por meio da seleção humana, há hoje mais cerejeiras e bordos do que há mil anos, quando a cerejeira se tornou a árvore florífera preferida do Japão. Como foi mencionado anteriormente, antes disso, a árvore mais querida era a ameixeira; e o declínio do favoritismo de uma espécie com relação a outra se operou (e se refletiu) na literatura. Na Idade Média, os poemas de cerejeira já são maioria; plantam-se mais cerejeiras em alusão a esses poemas, e os novos poetas se sentem movidos pela beleza das flores a escreverem ainda mais poemas de cerejeira. Essa idealização da paisagem — que resulta na adequação da natureza em conformidade à cultura — talvez seja o princípio mais constante em toda a tradição literária japonesa.

Se por um lado o culto à natureza no Japão é artificialista, não se deve minimizar a medida de “realismo brutal” presente na mesma literatura. Como o exemplo de Kamo no Chômei testemunha, é possível encontrar nos autores japoneses uma visão muito pragmática de uma natureza terrível e destruidora, em conformidade tanto com a experiência nacional de uma região onde os tsunami, vulcões, terremotos e tufões são correntes, quanto com a concepção budista de um mundo efêmero, onde as veleidades humanas não têm valor de permanência.

Kamo no Chômei (1155 – 1216) é o autor do Hôjôki, ou Relato da cabana de nove metros quadrados. Trata-se de um pequeno ensaio do gênero zuihitsu (miscelânea ou prosa de não-ficção). É um exemplo de literatura inja (隠者文学), ciclo de textos da Idade Média japonesa, escritos por homens retirados da sociedade e que decidiram viver de forma austera, praticando os preceitos budistas do desapego. Na primeira página do Hôjôki, afirma-se o conceito de transitoriedade das coisas. É um dos trechos mais conhecidos da literatura japonesa:

ゆく河の流れは絶えずして、しかももとの水にあらず。よどみに浮かぶうたかたは、かつ消え、かつ結びて、久しくとどまりたるためしなし。世の中にある人とすみかと、またかくのごとし。

A água do rio que vai não cessa e, além disso, a que ora corre não é a mesma água que antes foi. As bolhas que flutuam nas águas paradas se desfazem, e logo voltam a ser, e não vemos o que elas duraram. O mesmo se dá com a gente e as casas deste mundo.

Kamo no Chômei, Hôjôki (abertura)

Desde o início, está anunciada a métaphore filée que vai estruturar o texto. A terra, a casa e o corpo são as “moradas” daquilo que é permanente: a alma. As moradas são temporárias, e não está nelas a salvação. Só é capaz de atingir a paz espiritual aquele que renunciar aos bens materiais. Por outro lado, e isso é uma característica da estética japonesa do período, as obras de arte, a música, a literatura e a apreciação das belezas naturais não são consideradas como integrantes da categoria “bens materiais”; elas são, antes, caminhos de enriquecimento da alma, e conduziriam a um estado superior de sabedoria de vida.

Chômei descreve então cinco catástrofes ocorridas na capital, por ordem cronológica: um grande incêndio; um tornado; a transferência da capital por ordem de Kiyomori em 1180; a grande fome de 1181 a 1182; e um terremoto. Ao descrever os desastres, Chômei cita inúmeras vezes o destino das moradas e as atitudes das pessoas. No incêndio, as pessoas fogem de suas casas para salvarem suas vidas, e não conseguem salvar seus pertences. Seus objetos mais valiosos viram cinzas. O autor busca demonstrar que, quando a vida está em risco, as pessoas percebem a irrelevância dos objetos e da moradia. Ao comentar as catástrofes naturais, Chômei destaca, entre todas, o terremoto como a situação emblemática, em que algo que deveria ser estável e fixo (a terra) se torna incerto.

Temos em seguida uma descrição do lugar onde mora Chômei, e uma comparação com suas antigas moradas e suas condições anteriores de vida. Ele também relata o seu cotidiano no monte Hino, a prática ascética, o fazer poético, suas contemplações de paisagens, a prática com os instrumentos musicais e o charme de cada estação do ano. O autor revisita a ideia da morada provisória e reflete sobre a sua cabana, comparando-se ao paguro (pequeno crustáceo), que não precisa de nada além de uma morada pequena, e à águia pescadora, que constrói sua casa à beira de penhascos por temer o contato humano. Por fim, ele percebe que não conseguiu alcançar o desapego a que se propôs, pois ainda gosta demais de sua cabana e da vida tranquila que leva ali. O tom do texto é bastante pessimista, e está de acordo com a concepção budista do mappô, comum à época em que Kamo no Chômei viveu. O mappô shisô [末法思想] é uma profecia que consta das escrituras budistas, afirmando que um dia os ensinamentos religiosos não serão mais observados e o mundo acabará. Durante a Idade Média no Japão, acreditava-se ter entrado no período do mappô no ano de 1052.

Cabe ressaltar que o próprio Kamo no Chômei é capaz de, ao mesmo tempo, ver a natureza como algo hostil e belo, numa suplementaridade de funções. Como fica claro da leitura de Relato da cabana, a diferença entre um meio ambiente destruidor e acalentador se revela não exatamente nos efeitos — ora desastrosos, ora benéficos — da natureza sobre os humanos, e sim sobre a atitude que os humanos têm diante da morte, da perda, da vida e dos bens materiais. No universo profundamente moral e budista da obra, as catástrofes existem para aqueles que não atingiram a paz espiritual, ou que não se desapegaram de uma vida de posses e vaidades.

Essa retidão moral almejada pelos autores da literatura inja permaneceu como um elemento da tradição literária japonesa até o século XX. Gostaria de comentar como alguns aspectos desse “budismo estético” estão presentes na obra de dois autores japoneses da modernidade, e podem servir como antídoto à modernização e ocidentalização por que passou a sociedade japonesa. Mais ainda, são exemplos daquilo que a literatura pode fazer: a mensagem de reflexão crítica que vem na esteira desses escritos tem apelo internacional, e pode, no contexto da pós-modernidade, ajudar a compor um corpus ecocrítico.

As contradições decorrentes do advento de uma sociedade urbana e industrial no início do século XX são o tema central do romance Kokoro/Coração (2008; primeira publicação em 1914), deNatsume Sôseki (1867 – 1916), um dos mais importantes autores do realismo japonês. O livro parece desejar pôr à prova o princípio do isolamento e da vida ascética, heranças do budismo, em um contexto moderno.

De um lado, Kokoro/Coração descreve as obrigações da tradição (respeito aos pais, lealdade, honra, submissão à vontade do grupo, reverência à nação e ao governo), que são prescritas pela filosofia confucionista e a via pela qual a Restauração Meiji buscou conduzir o Japão ao grupo das “nações desenvolvidas” e imperialistas. De outro, há a espiritualidade budista que incita ao isolamento e ao quietismo, como único caminho para a paz espiritual. Somem-se a essas contradições os novos ideais individualistas e utilitaristas, importados do Ocidente, e podemos dizer, como Roberto Yokota, que o romance demonstra “a dolorosa internalização psicológica [desses conflitos] no contexto da modernização” (Yokota, 2008, p. 16).

As personagens de Sôseki resistem ao individualismo ocidental; no entanto, rejeitam também (ainda que silenciosamente) o coletivismo imposto pela autoridade japonesa, calcado na tradição e retomado em um discurso de construção do Estado-Nação, discurso que, ainda que essencialmente moderno, precisa, para se instaurar, criar a ilusão coletiva de profundidade cronológica — daí o apelo que faz a valores ancestrais, heróis do passado, e o legado de guerras antigas. Esse Estado-Nação, que as personagens de Sôseki rejeitam mas de cujas exigências não conseguem escapar, é o lugar do excesso de cultura, do mal-estar da civilização, que se encontra em uma posição de antagonismo frente à natureza. Incapaz de vencer as forças dessa cultura monstruosa, o herói sôsekiano se entrega à passividade, ou recorre ao suicídio.

Um poeta da geração seguinte, Miyazawa Kenji (1896 – 1933), tem como ponto de partida o mesmo mal-estar, porém faz escolhas estéticas e existenciais diferentes. Autor de uma obra extremamente original e de interessantes ressonâncias com outros modernistas (Walt Whitman, Emily Dickinson e o Alberto Caeiro de Fernando Pessoa, por exemplo), Miyazawa era devoto da seita budista Nichiren, vegetariano, e acreditava que o ser humano não tinha o direito de matar outros animais. Segundo seu biógrafo e tradutor americano, a sua obra é uma afirmação de “que todos os humanos e animais são parte da criação, e nós devemos todos viver em harmonia, juntos, ou então pereceremos juntos” (Pulvers, 2007, p. 20).

Miyazawa parte do princípio de que devemos renunciar ao ego — o ego que as personagens de Sôseki têm esmagado sob o peso da modernidade — para atingirmos a paz espiritual. Mais ainda: no seu universo, não há hierarquia entre as espécies, e os bichos de suas obras falam, sentem e sofrem como os humanos (motivo pelo qual muitos de seus contos, ainda que extremamente complexos do ponto de vista filosófico, são considerados como “literatura infantil”). Um poeta da natureza que não faz uso das convenções literárias para falar dos animais e plantas, ele incorpora o vocabulário das ciências (astronomia, geologia, química, etc.) para descrever um universo em expansão e sempre surpreendente. O planeta que ele imagina admite tanto a tradição, como os fenômenos naturais, e a ciência que os descreve, numa utopia onde todos esses elementos convivem harmônicos, ainda que dispersos e sem hierarquia.

洪積世が了って
北上川がいまの場所に固定しだしたころには
こゝらはひばや
はんやくるみの森林で
そのところどころには
そのいそがしく悠久な世紀のうちに
山地から運ばれた漂礫が
あちこちごちゃごちゃ置かれてあった
それはその後八万年の間に
あるいはそこらの著名な山岳の名や
古い鬼神の名前を記されたりして
いま秩序よく分散する

ao final do período diluviano
quando o rio kitami começou a se fixar em seu atual curso
havia matas de criptomérias
bosques de bétulas
nogueiras aqui e ali
ao longo de séculos tumultuados infindáveis
trazidos das serras pela correnteza seixos cascalho
espalhados amontoados por toda parte
e ao final de oitenta mil anos
como os nomes talvez de montes famosos
de deuses demônios constantes em registros
agora se dispersam seguindo uma ordem

(21 de março de 1927)

O universo de Miyazawa Kenji guarda elementos da natureza idealizada da literatura tradicional: seu cuidado com a precisão do vocabulário (nome de árvores, de eras, de tipos de pedras) faz homenagem aos clássicos; no entanto, já não se trata de uma natureza secundária a entidade com a qual o poeta deseja se fundir — os nomes “de deuses e demônios constantes em registros” já foram esquecidos, ou estão espalhados pela terra. É o planeta geológico das ciências modernas, com suas camadas tectônicas e milênios de história mineral, que sua imaginação descreve. Em sua cegueira para hierarquias humanas (ou naturais) pré-estabelecidas, Miyazawa afirma que as pedras “se dispersam seguindo uma ordem” — a ordem a um tempo calculada e aleatória de uma eternidade que ele sonhou, de uma harmonia possível entre a cultura e a natureza.

Este texto é uma adaptação do artigo: CUNHA, Andrei. Alguns aspectos literários do culto à natureza no Japão. In: SCHMIDT, R.; MANDAGARÁ, P. (Org.). Sustentabilidade: o que pode a literatura?. 1ed. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2015, p. 191-210. Disponível em: <https://www.academia.edu/22814061/Alguns_aspectos_liter%C3%A1rios_do_culto_%C3%A0_natureza_no_Jap%C3%A3o>. Acesso em: 10 set. 2021.

REFERÊNCIAS

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Sei Shônagon como Weltliteratur

Orientalismo e autoria feminina em O livro de travesseiro

O Livro de Travesseiro (枕草子, Makura no Sôshi) de Sei Shônagon (清少納言). A tradução brasileira de 2013 se chama O Livro do Travesseiro. A adaptação de Peter Greenaway para o cinema se chama O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1996).

O Livro de Travesseiro de Sei Shônagon, escrito entre o fim do século X e o início do XI, possui hoje incontestável status canônico no contexto da literatura japonesa. Ao mesmo tempo, é o texto japonês mais traduzido do mundo, ocupando lugar estável na lista de títulos que são considerados como pertencentes à Weltliteratur. A adaptação cinematográfica de 1996 — O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway — é, na visão de Evando Nascimento, “um dos dez filmes mais importantes do século XX” (Nascimento, 2004, p.33).

A autora, Sei Shônagon (c.965 d.C. – ?) assumiu em 993 o posto de dama-de-honra da Imperatriz Teishi. Nesse mesmo ano, o pai de Teishi, Fujiwara no Michitaka, poderoso regente, ascendeu ao cargo de chanceler. Em seus primeiros anos, o salon a que pertencia Sei Shônagon foi o mais influente e de maior esplendor na Corte Imperial de Heian (atual Quioto), e o prestígio do círculo de Teishi está registrado nas páginas de O Livro de Travesseiro. A autora descreve eventos solenes, a beleza das roupas da Corte e o refinamento e sensibilidade da Imperatriz — incluindo inúmeras anedotas que confirmam a cultura e inteligência da jovem alteza.

O esplendor do partido a que pertencia Sei Shônagon, no entanto, durou pouco. O Chanceler Michitaka, pai de sua senhora, morre em 995. Korechika, irmão da Imperatriz, é exilado em 996. O partido rival, liderado por Fujiwara no Michinaga (irmão mais novo de Michitaka), consegue afastar Teishi do Palácio Imperial. A filha do líder rival, Shôshi, passa a ser a favorita do Imperador. Sei Shônagon acompanha sua senhora em desgraça, atuando como sua dama-de-honra até a morte de Teishi. Essas reviravoltas não são mencionadas diretamente em O Livro de Travesseiro, com apenas algumas alusões feitas ao afastamento da Imperatriz. Em uma parte do texto escrita posteriormente, Sei Shônagon descreve o luxo do seu círculo e afirma, melancólica, que ninguém poderia ter previsto o que aconteceria depois — mas ela não narra a catástrofe. Quase nada se sabe sobre a vida que a autora teria levado depois de deixar a Corte. Algumas anedotas sobrevivem, mas são consideradas apócrifas.

O Livro de Travesseiro é hoje descrito como o primeiro exemplo que se conhece de um gênero literário nativo do Japão, o zuihitsu. Esse tipo de texto tem por pressuposto (ou, por assim dizer, mystique) uma ausência de plano ou desígnio por parte da autora, que vai anotando, literalmente “ao correr do pincel”, tudo o que lhe vem à cabeça (um teórico mais desconfiado poderia afirmar que a autora meramente cria uma ilusão de espontaneidade). O zuihitsu é semelhante ao diário, mas não exige periodicidade fixa ou sequer assiduidade; às memórias, pois pode conter relatos do passado; e à poesia, por suas associações e trechos de inspiração lírica. Em sala de aula, meus alunos muitas vezes associam esse gênero textual à crônica brasileira. Alguns autores comparam o zuihitsu à escrita para a Internet (Midorikawa, 2008). No entanto, a classificação da obra de Sei Shônagon como zuihitsu só ocorreu muitos séculos depois de sua morte, e a própria definição desse gênero literário precisa ser problematizada.

O livro de travesseiro de Sei Shônagon

Tradução de Makura no Sôshi [枕草子], de Sei Shônagon [清少納言] (séculos X–XI).

SEI, Shônagon. O Livro de Travesseiro. Porto Alegre: Escritos, 2008.

A época em que O Livro de Travesseiro foi escrito é referida como a “idade de ouro dos diários femininos da Corte Imperial”. As mais importantes obras literárias desse período foram escritas por mulheres. Ainda que no domínio da poesia sempre tenha havido autoras no Japão, até esse momento histórico a prosa era escrita em chinês (língua de prestígio) e principalmente por homens — ou assim parece, a julgar pelos textos que sobreviveram até nossos tempos. Muitas teorias buscam entender os motivos históricos e culturais para essa “primazia do feminino” em um período considerado por muitos como de central importância no desenvolvimento da identidade de um país tradicionalmente patriarcal. Pode-se sugerir que isso se deva aos resquícios de uma organização social anterior, matriarcal, nas ilhas nipônicas. Até a transição da pré-história para o período histórico propriamente dito, as mulheres tinham um status bastante alto nas instituições políticas do Japão. A importância da figura feminina sobrevive, de alguma maneira, na religião nativa (o xintoísmo), que sempre valorizou a atuação de sacerdotisas e de mulheres xamãs.

O principal motivo, no entanto, para a grande quantidade de textos de autoria feminina nessa época pode ser mais simples e prosaico. Muitas das atividades desempenhadas pelas mulheres da nobreza de médio escalão com cargos e responsabilidades na Corte envolviam o bom uso do pincel. A poesia tinha uma função social, e a comunicação por escrito era de extrema importância. Aquilo que se escrevia — e a maneira como se escrevia, desde a cor do papel escolhido, passando pela tinta, caligrafia, elegância da linguagem, e mesmo a maneira como se dobrava a mensagem — podia gerar prestígio não apenas para a autora, como para seus parentes e aliados. As cartas, poemas e anotações de antepassados eram uma importante relíquia de família. A escrita — assim como a roupa e o refinamento no trato social — era um fator de produção de diferença e distinção.

Pode-se também lembrar a evolução da hierarquia de gêneros e das políticas linguísticas no Japão como um dos fatores associados à atual valorização da escrita de autoria feminina da Era Heian. Os textos considerados como de pouca importância à época de Sei Shônagon (os diários femininos e as obras de ficção) hoje são vistos como centrais. Depois da consolidação, ao final do século XIX, do estado-nação japonês moderno, perderam prestígio muitos textos que eram mais valorizados pela tradição (textos em chinês, diários oficiais, textos religiosos e filosóficos) e aos quais apenas os homens tinham, em tese, acesso (Shirane, 2000). O país precisava dar destaque à produção em língua japonesa, e uma grande parte dos melhores exemplos de prosa em língua vernácula do período clássico havia sido escrita por mulheres. Além disso, os gêneros que anteriormente eram considerados como secundários (a ficção e o ensaio) ganharam centralidade devido à modernização do país: a ficção em prosa era considerada, no Ocidente que o Japão adotara como modelo, como a mais importante forma de literatura (o “romance”); e a imprensa mecanizada e a ascensão do jornal criaram uma gigantesca demanda por textos ensaísticos, o que levou a uma reivindicação do passado literário japonês, ressignificado para os tempos modernos da miscelânea.

O orientalismo britânico que informou as primeiras traduções de trechos e seleções de O Livro de Travesseiro era uma das expressões do expansionismo de um império que desejava conhecer e dominar tudo. Arthur Waley (1889–1966), o mais importante dos primeiros tradutores, trabalhava como Curador Assistente do Acervo de Gravuras e Manuscritos Orientais do British Museum, e aprendeu a ler chinês e japonês clássicos para ajudar na catalogação das obras do museu. Mesmo sem nunca ter ido ao Japão ou à China, o seu domínio da linguagem escrita era incontestável, e sua tradução de O Romance do Genji, assim como de seleções de poesia clássica chinesa, são ainda hoje consideradas por muitos como modelos de perfeição estilística. O British Museum, é claro, é a materialização arquitetônica do universalismo predatório do Império Britânico. Assim como a enciclopédia, as academias científicas, os arqueólogos e os exploradores, o museu deseja capturar o universo — não apenas: ele deseja capturar e ordenar o universo, de acordo com critérios filosóficos, científicos ou espúrios, como os descritos sardonicamente por Borges em “O Idioma Analítico de John Wilkins”. 

O cosmopolitismo das grandes potências pode ser descrito como vendo “em cada horizonte de diferença novas periferias da sua própria centralidade, novas patologias por meio das quais a sua própria normatividade pode ser definida e deve se reafirmar” (Smith, 1988, p.54). Assim, no caso de Sei Shônagon, o fato de ela ser mulher e percebida como “namoradeira” rendeu muitas páginas constrangedoras escritas por homens europeus de uma mentalidade francamente vitoriana. O foco em roupas e protocolo (temas tidos como muito sérios para a sociedade da autora) também serviu para classificá-la como “apenas mais uma escritora mulher”, preocupada com cor, luxo e frivolidades. Esse tipo de leitura consegue encontrar uma universalidade no feminino definido como insignificante, o que não deixa de ser uma perversa façanha.

Não se trata aqui de contrapor o orientalismo à ideia de “literatura mundial”, em um binarismo de bons versus maus. Antes de tudo, é preciso reconhecer que os primeiros orientalistas britânicos e franceses tiveram um papel muito importante na disseminação e valorização dessas culturas, não apenas no exterior, como mesmo no Japão. É bastante conhecido o fato de que a estampa japonesa adquiriu o status de arte e passou a ser mais admirada pelos próprios japoneses a partir da apreciação europeia. As traduções do japonês de Arthur Waley foram cruciais para o desenvolvimento da ideia de literatura de autoria feminina de Virginia Woolf e para a renovação das formas poéticas e teatrais do ocidente por Ezra Pound e William Butler Yeats, para ficarmos apenas nos três nomes mais célebres e que tiveram contato direto com o trabalho de Waley. Na primeira metade do século XX, antes de surgirem as traduções para o japonês moderno, muitos japoneses entraram em contato com O Romance do Genji por via da tradução de Waley, considerada mais “fácil de ler” do que o obscuro japonês antigo de Murasaki Shikibu.

O orientalismo britânico informou, em parte, o orientalismo americano, que se tornou mais expressivo durante a Guerra do Pacífico (1942–1945) e o Período de Ocupação (1945–1952). Também essa variedade de orientalismo tem características predatórias, e parece preocupada em instrumentalizar conhecimentos para facilitar o domínio. Talvez a mais importante obra escrita sobre o Japão por um orientalista seja O Crisântemo e a Espada (1946; a edição brasileira é de 1972), da antropóloga Ruth Benedict, que contou com a colaboração do Escritório de Informação de Guerra dos Estados Unidos, em seu projeto de traçar um retrato do “espírito japonês” de maneira a facilitar o trabalho de pacificação do país derrotado pelas tropas do General MacArthur. Nessa mesma direção, os tradutores americanos dos anos 1940–1970 demonstram uma preferência por um Japão nostálgico, antigo, clássico — o Japão de antes da Segunda Grande Guerra (Venuti, 1997), que de alguma forma era considerado como a chave da compreensão da “essência nacional”. Ou, como sintetiza Damrosch:

A recepção de textos do Japão [nos Estados Unidos…] teve frequentemente mais a ver com os interesses e necessidades americanos do que com uma verdadeira abertura para outras culturas. Ainda hoje, obras estrangeiras raramente são traduzidas nos Estados Unidos, o que dirá distribuídas amplamente, a menos que elas reflitam preocupações americanas e que estejam confortavelmente de acordo com as imagens americanas da cultura estrangeira em questão.

Damrosch, 2003, p.17–18

Essa preferência determinou, por exemplo, a escolha de Kawabata Yasunari para ser o primeiro japonês a receber o Nobel de Literatura, em 1968 (no lugar de Mishima Yukio, tido como “muito ocidentalizado”). Além disso, foi o exemplo dos Estados Unidos que definiu, ao menos até o fim do século XX, quais títulos japoneses seriam traduzidos — indiretamente, por via do inglês — e publicados no Brasil. Com raríssimas exceções, até os anos 1990, a população brasileira de descendentes de japoneses não teve espaço de atuação no mercado de traduções literárias do Brasil — o que não deixa de ser surpreendente, pois, nas poucas vezes em que intelectuais japoneses ou brasileiros de origem japonesa se envolveram na escolha de títulos, tradução e publicação de obras do Japão no Brasil, a qualidade do livro obtido foi muito superior à da produção nos moldes “normais” de expectativa do polissistema.

O aval da UNESCO para Notes de Chevet, a tradução francesa. Esta mensagem, que consta até hoje do verso do frontispício das edições da Gallimard, esclarece as circunstâncias em que a tradução francesa de O Livro de Travesseiro foi publicada nos anos 1960, com a colaboração da UNESCO, do governo japonês e do comparatista René Étiemble.

Quando Kawabata ganhou o Nobel, já havia outra tendência em política internacional guiando, há duas décadas, os rumos da Literatura Comparada e da Weltliteratur: a Guerra Fria. O Japão era (é) o único país do mundo a ter sofrido um ataque com bombas atômicas, e entre os anos 1950 e 1970 era visto como um símbolo do desejo de paz (Hiroxima meu Amor, de Alain Resnais, é de 1959). A Guerra Fria teve profundo impacto sobre as concepções de cultura e sociedade no mundo. Essas transformações podem ser verificadas no ideal de cosmopolitismo desenvolvido por órgãos supragovernamentais, tais como a Organização das Nações Unidas (que é muitas vezes retratada como um lugar sombrio e perigoso por Hollywood, nessa época — por exemplo, em Intriga Internacional, de Hitchcock, também de 1959). A UNESCO deu início a um projeto de tradução de literatura (Collection UNESCO d’œuvres représentatives) já em 1948, buscando tornar a obra de autores de línguas não hegemônicas conhecida nas línguas oficiais de trabalho da ONU. Não por acaso, dentre as línguas representadas, a literatura japonesa tem um considerável número de títulos traduzidos. Também não por acaso, um dos consultores envolvidos na seleção de títulos para esse imenso catálogo da cultura humana foi René Étiemble, e é de Étiemble a recomendação de O Livro de Travesseiro para essa coleção.

Eu gostaria de poder dizer que também não é por acaso que “A Crise da Literatura Comparada”, de René Wellek, data de 1959, mas sinto que seria forçar muito o uso da cronologia no âmbito da exegese histórica. O texto-irmão desse, Comparaison n’est pas raison, de Étiemble, foi publicado em 1963. Esses textos, esses filmes, esses órgão internacionais, essas bibliotecas, essas traduções, ganham novo significado se pensamos que sobre eles pairava a constante ameaça da aniquilação total. Em outubro de 1962, durante o confronto que ficou posteriormente conhecido como a Crise dos Mísseis de Cuba, o mundo viveu por treze dias a real possibilidade da total extinção (a estratégia soviética e americana para a crise nuclear foi batizada de MAD — mutual assured destruction). A palavra “crise” do título do artigo de Wellek parece prenunciar o pesadelo político que ocorreria três anos depois; e o livro de Étiemble, com o seu “não é razão” do título, é talvez um dos últimos textos defendendo um ideal de humanismo racional, pré-1968, com argumentos cosmopolitas e internacionalistas, como uma forma de resistência frente à irracionalidade da ciência, da técnica e da guerra.

Homem/Mulher, Oriente/Ocidente. O encontro de culturas imaginado como um encontro amoroso é um dos temas centrais de O Livro de Cabeceira e de Hiroxima, meu amor. Esses filmes retratam o encontro (ou desencontro) de dois corpos como entre iguais e fundado no respeito mútuo, em contraste com os outros relacionamentos anteriores das personagens, baseados em dominação, exploração ou sofrimento. Os dois casais buscam dar sentido e reverter situações existenciais que são fruto de traumas ocorridos no plano da política internacional, como a  catástrofe de Hiroxima, o final da Segunda Grande Guerra, a devolução de Hong Kong à China e o passado colonialista do Império Britânico.

Nesse sentido, a Literatura Comparada da segunda metade do século XX, a abertura multidisciplinar, as tentativas de descentralização e o maior diálogo entre culturas parecem ser o fruto de uma real e vivida angústia — e a literatura japonesa se encontrava profundamente envolvida nessas novas propostas de criação de uma Weltliteratur. Visto de Paris ou de Washington, o Japão dessa época representava o espectro da destruição pela bomba nuclear, mas também um novo ideal de paz e a cultura do Outro radical. Por outro lado, o idealismo comparatista que se associa a essa visão de Weltliteratur tem seus limites:

Os comparatistas do pós-guerra […] tinham esperanças messiânicas de que a world literature seria a cura para os males do separatismo nacionalista, da xenofobia e da violência de fronteira — o que deixava implícita a ideia de que o comparatista seria um sucessor transcendental à visão estreita de mundo associada ao especialista monolíngue.

Damrosch, 2003, p. 282

Hoje sabemos que a xenofobia e a violência de fronteira não foram eliminadas pelo ideal de cosmopolitismo representado por órgãos internacionais como a ONU e a UNESCO. A tradução não conseguiu promover a paz e o entendimento entre os povos. No campo da literatura, o “especialista monolíngue” continua sendo a figura mais importante e a sua interpretação do texto literário é considerada como a que tem autoridade. A desconfiança com relação ao texto traduzido e a resiliência dos nacionalismos ao longo de todo o século XX parecem ainda ecoar o pessimismo de George Orwell, que afirmava, em 1941, que a literatura é “a única arte que não consegue atravessar fronteiras […] uma espécie de piada interna, com pouco ou nenhum valor fora de seu grupo linguístico” (1981, p.264).

A ideia goethiana de Weltliteratur também se esvaziou, substituída por aquilo que David Damrosch chama de global literature, “um tipo de literatura que seria lida apenas em terminais de aeroportos, sem ser afetada por nenhum contexto específico” (2003, p.25). A norma tradutória do mercado editorial brasileiro para obras japonesas reflete essa globalização: há uma ênfase em títulos de autores que já foram traduzidos para o inglês e observa-se um ideal de legibilidade e invisibilidade do tradutor, com traduções limitadas a uma linguagem neutra, dentro da norma culta e com um mínimo de notas de rodapé (preferencialmente, nenhuma). É dado destaque para temas que são geralmente associados ao Japão por um brasileiro: grandes centros urbanos, erotismo, solidão, gueixas, gatos, samurais, sushi, cultura pop. Espera-se que o tradutor trabalhe sozinho, de maneira intensiva e por empreitada, de preferência com romances —  publica-se pouquíssima poesia, ensaio ou conto em tradução.

Por outro lado, se não se confirmou a previsão de que as literaturas nacionais seriam um dia substituídas por uma “literatura geral”, hoje se lê muito mais literatura traduzida de línguas não hegemônicas do que nas décadas anteriores. O Livro do Travesseiro (a tradução brasileira de 2013), por exemplo, desobedece alegremente diversas normas restritivas do mercado brasileiro de livros. Trata-se de uma tradução de um texto da Antiguidade, feito por uma equipe que levou onze anos para realizar a minuciosa tarefa, com um grande volume de paratextos explicativos e nada menos que 419 notas de rodapé. A linguagem não faz concessão às expectativas de uma prosa neutra, adotando uma precisão acadêmica e mesmo um preciosismo terminológico que poderiam repelir um leitor mais descompromissado. E, é claro, O Livro do Travesseiro não é um romance e a sua indefinição de gênero é uma de suas características mais centrais. Tudo isso levaria a crer que o caro calhamaço de mais de seiscentas páginas de prosa fragmentária e sem enredo seria um fracasso de vendas, o que não se confirmou.

Mesmo sendo uma obra “clássica”, portanto, a história de O Livro de Travesseiro, como literatura nacional e como Weltliteratur, é problemática; ela passa por questões como a reescritura do passado literário; o processo de criação do estado-nação; e a autoria feminina. A história da recepção ocidental do texto é uma história de apropriação (da voz feminina, da obra para outros fins). Ainda que seja considerado como ultrapassado no âmbito da teoria da tradução literária, o conceito de “fidelidade” poderia ser lembrado aqui como um contrapeso para as questões da distância cultural, da distância temporal, da performatividade de gênero e da apropriação da voz de um sujeito em desvantagem.

Isso tem consequências previsíveis (a profunda mutilação e inferiorização por que passou o texto na mão de tradutores homens e orientalistas), mas também leitores mais “bem intencionados” podem incorrer na desleitura da cultura não ocidental. Por exemplo, Sei Shônagon já foi descrita como uma protofeminista, e sua obra como erótica, o que tem reflexo inclusive na maneira como foi adaptada para o cinema. É interessante notar, também, que raramente os teóricos do cinema, da Literatura Comparada e da adaptação que já trataram do filme O Livro de Cabeceira relacionaram a adaptação a uma reflexão mais sistemática sobre o texto que foi adaptado; e quase todos os autores que tratam do livro sequer acham plausível considerar o filme como digno de menção.

Não se deve confundir, por outro lado, o ideal de Weltliteratur de Goethe com o “cosmopolitismo triunfalista” francês e inglês (Damrosch, 2003, p.9). Esse é um dos motivos por que, no título deste post, escolhi usar o termo em alemão, e não os mais corriqueiros world literature ou république mondiale des lettres. Guardadas as devidas diferenças, a maneira como Goethe percebia a literatura em língua alemã de sua época é semelhante a como as literaturas japonesa e brasileira se perceberam na modernidade: como culturas periféricas e provincianas.

O conceito goethiano de Weltliteratur foi importante para a recepção das literaturas da China e do Japão no Ocidente. Ele se encontra expresso em suas conversas com Eckermann:

Estou cada vez mais convencido de que a poesia é um patrimônio da humanidade [ein Gemeingut der Menschheit], e de que ela se revela em toda parte e em todas as épocas, em centenas e centenas de pessoas. […] Quando nós, alemães, não olhamos para além do estreito círculo à nossa volta, tornamo-nos fáceis presas de uma pedante presunção [pedantischen Dünkel]. O termo “literatura nacional” já não quer mais dizer muita coisa: anuncia-se a era da Weltliteratur, e todos devem portanto contribuir para que ela chegue mais rápido.

Goethe em conversa registrada por Eckermann, 1908, p.329

Goethe adverte que o “estreito círculo à nossa volta” pode nos tornar “fáceis presas de uma pedante presunção”. Além de buscar ativamente textos em línguas estrangeiras, antigas ou contemporâneas, Goethe também lia muitas traduções, e o diário de Eckermann enquadra o surgimento do termo Weltliteratur no contexto de uma conversa entre os dois sobre um “romance chinês”. Goethe considera a literatura do mundo como um “patrimônio da humanidade”, à semelhança dos ideais de respeito à diversidade cultural que a UNESCO tem procurado promover desde o fim da Segunda Grande Guerra.

No entanto, a conjuntura política e intelectual da Europa no início do século XIX — mesmo para a cultura germânica de Goethe, que ele percebia como periférica em relação aos centros de prestígio cultural — é muito diferente da vista panorâmica do mundo que se tem a partir da América Latina, terra de imigrantes. Um exemplo emblemático é o de Jorge Luis Borges, cuja formação intelectual foi em parte determinada pelos orientalismos britânico e francês e pela Weltliteratur alemã. Sabemos por seus textos para revistas e jornais que o autor argentino sempre se interessou pela literatura da China e do Japão, que ele leu em traduções para o alemão, francês e inglês. Ora, a atitude predatória da cultura europeia sofre uma dramática transformação quando redistribuída espacialmente desde Buenos Aires. Talvez resida aí a diferença entre a coleção de peças catalogadas de museu, vindas do mundo todo (os mármores do Parthenon, removidos e transportados para a Inglaterra em 1812, e nunca devolvidos) e a visão de mundo descentralizada e cosmopolita que se espera da Literatura Comparada: sim, o mundo precisa conhecer o mundo; sim, as línguas podem e devem ser traduzidas para outras línguas; mas esse conhecimento e essa tradução devem contribuir para uma progressiva dissolução dos centros de autoridade.

De certa maneira, pode-se dizer que isso já começa a mudar no Brasil — por exemplo, com o recente aumento no número de traduções diretas de literatura escrita em línguas periféricas, sem intermediários hegemônicos, como era comum até os anos 1990. A Biblioteca de Babel de Borges, afinal — e ao contrário do British Museum — não tem centro: o centro é sempre onde se está.

Ainda assim, no Brasil, a cultura japonesa, mesmo constituindo um importante aporte para a formação da nossa identidade, é, paradoxalmente, muito visível e, ao mesmo tempo, muito pouco conhecida. Por um lado, o Brasil é o país do mundo com maior número de descendentes de imigrantes japoneses. Essa presença pode ser verificada, quer na composição étnica do povo brasileiro, quer no histórico comunitário das regiões de imigração, assim como no grande número de escolas em que ocorre o ensino da língua japonesa no Brasil.

A arte e literatura japonesa foram importante elemento na renovação das formas e gêneros literários do modernismo, a começar pelo interesse que despertaram em autores como Woolf, Yeats e Pound. Na América Latina, a obra de Matsuo Bashô e de outros poetas japoneses teve grande impacto na formação de Octavio Paz, de Vicente Huidobro e de Jorge Luis Borges, entre outros. No Brasil, a poética tradicional japonesa encontra ecos na obra poética e na teoria de  autores  vinculados ao movimento concretista, como Haroldo de Campos,  Augusto de Campos e Paulo Leminski, e repercute na concepção minimalista do conto brasileiro contemporâneo, especialmente na obra de ficção de Dalton Trevisan e na produção gráfico-verbal de Millôr Fernandes, por exemplo. Essa relação consequente entre a literatura brasileira e a japonesa pode ser constatada desde as nossas vanguardas modernistas, na obra poética de Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

No entanto, o ensino de literatura, assim como a reflexão sobre o cânone de obras fundamentais da literatura dita “universal”, em universidades brasileiras, continua a proceder como se o confortável rótulo de “ocidental” servisse tão bem ao caso brasileiro que dispensasse o exame de obras literárias do Japão. Comparada a outras literaturas nacionais de língua estrangeira, a japonesa é frequentemente ignorada na construção de cânones e de corpora de estudo. Ostensivamente, as justificativas mais comuns para esse “descuido” são de que o Japão não pertence ao Ocidente (como se a situação da América Latina dentro da tradição ocidental fosse ponto pacífico), e de que o fazer literário japonês não tem nenhum ponto de contato com a formação da literatura das Américas.

A posição “clássica” a esse respeito é de Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, ao afirmar que os “documentos literários do Oriente” não fazem parte de “nossa cultura”, estão “fora dela”. Em sua argumentação, o autor acrescenta: das “literaturas orientais recebemos e conservamos definitivamente apenas algumas obras, traduzidas (se é lícita a expressão) de maneira antes inexata, razão por que se tornaram obras nossas” (aqui, ele está se referindo especificamente ao Livro das Mil e uma Noitese à “pacífica sabedoria chinesa”; mais adiante, ainda menciona Omar Khajjam [sic], Li Tai Po [sic] e as “grandes coleções orientais de fábulas e contos, das quais as literaturas medieval e renascentista se aproveitaram”). O autor conclui: o “que não provém” da “herança antiga” das literaturas grega, romana e judaica clássicas “continua inassimilável” (Carpeaux, 1959, p.161–162). Ora, esse argumento é problemático, pois parte da premissa de que o Ocidente é um sistema fechado, cujas formas e gêneros têm um protótipo “puro”, que pode ser “isolado” na sua origem — a história da literatura europeia. A peremptória palavra “inassimilável”, com suas conotações pseudo-antropológicas, também soa fora de contexto em uma história da literatura.

O segundo argumento, de que não há ponto de contato entre literatura japonesa e a da América Latina, perde força diante da história recente. Mais do que a literatura europeia, a japonesa é semelhante à da América Latina justamente pela percepção de que se trata de uma literatura periférica — ambas absorveram, entre os séculos XIX e primeira metade do XX, as formas e os gêneros da literatura moderna da Europa (romance, conto, drama realista, verso livre), e chegaram à maioridade pela via da apropriação (quando esses dispositivos estrangeiros passaram a servir a vozes locais). Além disso, a própria tradição ocidental, ao enfrentar sua crise modernista na primeira metade do século XX, passou a lançar mão de conceitos e formas do Oriente (filosofia zen-budista, haicai, teatro nô, diário literário, ensaio zuihitsu) da mesma maneira, criando uma via de mão dupla de influências e de diálogo de tradições.

Ao tratar O livro de travesseiro como obra literária no polissistema brasileiro e no mundial, procuro adotar a ideia de Weltliteratur como “uma forma de ler”, ou, como define Damrosch, não como “um cânone fixo de textos, e sim como um modo de leitura: uma forma de envolvimento distanciado com mundos para além do nosso lugar e do nosso tempo” (2003, p.281). Creio que o meu modo de leitura em específico precisa levar em conta as necessidades pedagógicas da pesquisa em Literatura Comparada no Brasil. A contribuição que eu tenho a dar não é da ordem da exegese monolíngue. Assim, não procurei entender a obra de Sei Shônagon “em seus próprios termos”, ou a partir da fortuna crítica japonesa. Não quero dizer com isso que o trabalho de especialistas monolíngues não seja importante. Quero justamente dizer que não pretendo ler um clássico da literatura japonesa com uma metodologia que outros usaram muito mais eficazmente do que eu.

Por outro lado — e é este o lugar de onde estou falando — a leitura de O Livro de Travesseiro é importante para mim profissionalmente, seja como tradutor, seja como professor de língua e literatura japonesa. A minha tarefa é apresentar a estudantes brasileiros um corpus de textos que é percebido como não fazendo parte da nossa cultura. Eu não acredito que essa tarefa se limite a realizar um resumo daquilo que no Japão se acha e se sabe sobre esses textos. O significado pedagógico do “envolvimento distanciado com mundos para além do nosso lugar e do nosso tempo” passa pela explicitação e discussão de questões brasileiras relacionadas à leitura de textos em tradução e à concepção de um contexto internacional no qual circula e se refrata a literatura do mundo. É essa a atitude que busquei manter frente aos textos de que falo, e é essa atitude que eu relaciono ao conceito de Weltliteratur.

Este texto é um excerto (adaptado) da minha tese de doutorado. Referência: CUNHA, Andrei. O Livro de Travesseiro: questões de autoria, tradução e adaptação. 2016. 299 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2016. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/134427>. Acesso em: 10 set. 2021.

Referências

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A poesia japonesa no Brasil

Breve apresentação do tema

Todas as civilizações do mundo que contribuíram para a formação do que hoje chamamos de cultura brasileira têm alguma modalidade de expressão poética — tanto os povos indígenas quanto os que chegaram depois de outros continentes. A poesia japonesa chegou ao Brasil trazida pelos imigrantes, no início do século XX, e desde então também se tornou parte de nossa tradição poética. 

Há indícios de que uma longa tradição oral já existia nas ilhas japonesas desde a pré-história — na forma de canções, poesia de circunstância, toadas de trabalho, encantamentos, orações, loas ao imperador, competições repentistas e textos cerimoniais ritmados. Após a adoção da escrita, já encontramos poemas em japonês incluídos na cosmogonia retratada no Kojiki (século VIII). O exemplo mais célebre ocorre no capítulo XVI, em que temos a seguinte narrativa de como o deus Susanoo compôs o primeiro waka:

então 
[Susanoo]
o mandatário homem da ira forte 
procurou uma região na terra da emergência de nuvens
em que pudesse fazer construído um palácio […]
e fez lá um palácio
então […]
quando o grande kami fez seu palácio
nuvens assomaram na região
nisso
fez uma canção
que cantava: 

夜久毛多都 伊豆毛夜弊賀岐 都麻碁微爾 夜弊賀岐都久流 曾能夜弊賀岐袁

oito nuvens sobem
muitas nuvens num cercado
para à minha esposa
oito cercas construir:
oh! aquelas oito cercas!

yakumo tatsu / izumo yaegaki / tsumagomi ni / yaegaki tsukuru / sono yaegaki wo

Tradução inédita de Bruno Zitto para uma nova edição brasileira do Kojiki, a ser lançada em 2021 pela editora Bestiário (Porto Alegre)

Man’yôshû (“Antologia da Miríade de Folhas”), primeira coletânea poética japonesa a sobreviver até nossos dias, foi publicado em torno do ano de 759. Além de ser a mais antiga, é a maior coleção poética da literatura japonesa, com mais de 4.500 poemas. Muitos poemas do Man’yôshû são atribuídos a “pessoas do povo” — ausentes de antologias posteriores, que passaram a focar unicamente na produção da aristocracia. Quando um grupo de imigrantes japoneses e brasileiros descendentes de japoneses se reuniu, entre os anos 1960 e 1980, para organizar uma grande antologia de versos em japonês escritos no Brasil, o volume veio a se chamar Koronia Man’yôshû (o “Man’yôshû da Colônia”, de 1981), o que atesta o forte simbolismo que essa coletânea evoca no imaginário japonês — o livro que encerra, por assim dizer, as inúmeras e diversas vozes da nação. Abaixo, traduzo um exemplo daquilo que se convencionou chamar de sakimoriuta, ou seja, um poema escrito por um dos soldados que guardavam as fronteiras do império. O waka fala do sofrimento da separação, pois o poeta se encontra longe de sua família: 

和我都麻波 伊多久古非良之 乃牟美豆尓 加其佐倍美曳弖 余尓和須良礼受 我が妻は いたく恋ひらし 飲む水に 影さへ見えて よに忘られず
waga tsuma wa / itaku koirashi / nomu mizu ni / kage sae miete / yo ni wasurarezu 

minha mulher deve ter
tanta saudade de mim
até na água que bebo
vejo seu rosto refletido
não consigo esquecê-la 

Wakayamatobe no Mimaro, guarda de fronteira
(Man’yôshû, livro 20, poema 4322) 

Os dois principais tipos de waka (“poema japonês”) são o chôka (“poema longo”) e o tanka (“poema curto”). O chôka ou nagauta tem um número indeterminado de estrofes com dois versos (de 5 e 7 sílabas, alternadamente), terminando sempre com dois versos de sete sílabas. O tanka (que muitas vezes é referido simplesmente como waka, pois é a forma mais comum de poesia em japonês) tem sempre cinco versos e um total de 31 sílabas; a disposição da métrica obedece ao esquema 5-7-5-7-7.  

waka-tanka se consolidou como a forma poética central do sistema literário japonês com a organização da coletânea Kokin’wakashû (“Antologia de waka antigos e modernos”, século X). As quatro estações e o amor eram os temas mais importantes. Em especial, as flores e pássaros de primavera e de outono são muito valorizados na arte e na literatura.  

A poesia japonesa não é nunca rimada, pois o número de vogais e de possibilidades combinatórias entre vogais e consoantes é muito pequeno, o que banaliza consideravelmente a rima. O traço mais marcante da prosódia japonesa é a repetição ou alternância de versos de cinco e sete sílabas — algo que encontramos não apenas em poemas, mas mesmo em frases de efeito, citações memoráveis, provérbios, títulos de filmes, campanhas publicitárias, slogans, etc. Pode-se dizer que, em japonês, a “música da língua” tem especial preferência por esse esquema rítmico.  

Em português, também, há uma histórica preferência por versos de cinco sílabas (as chamadas “redondilhas menores”) e de sete sílabas (as “redondilhas maiores”), mas isso não significa que a nossa métrica funcione da mesma maneira que a métrica japonesa: em português, a contagem de sílabas só vai até a última tônica do verso, o que não ocorre em japonês; e nossa poesia dá grande destaque à alternância de sílabas tônicas e átonas, o que é bem menos enfatizado no Japão. Ainda assim, inúmeros poetas e tradutores brasileiros, ao traduzirem poesia japonesa para o português, ou ainda quando compõem poesia brasileira de inspiração japonesa, optam por estabelecer uma equivalência entre os versos de 5-7 moras do japonês e as redondilhas menor e maior de nossa versificação. Isso não é “certo” nem “errado”, do ponto de vista estético; é uma opção válida como outras. Do ponto de vista fonético, tonal e rítmico, o verso japonês simplesmente não corresponde ao brasileiro, e não há justificativa “científica” para equiparar uma coisa à outra. 

A poesia japonesa faz uso de outros recursos sonoros, como a aliteração e a assonância. Assim, por exemplo, neste poema, a teia sonora do poema japonês se baseia na repetição do /h/ aspirado (cinco vezes) e do /k/ (sete vezes). Alguns interpretam essas aliterações como a falta de fôlego de um coração aflito: 

久方の 光のどけき 春の日に しづ心なく 花の散るらむ
hisakata no / hikari nodokeki / haru no hi ni / shizukokoro naku / hana no chiruran 

na luz tranquila
de um dia tão claro
de primavera
por que caem inquietas
as pétalas das cerejeiras? 

Ki no Tomonori (Kokin’wakashû, livro 2, Primavera II, poema 84) 

O que o tradutor pode fazer, num caso desses? Tentei criar uma sonoridade “nervosa” com a repetição dos sons /t/, /d/ e /k/ — como um coração que bate — e das vogais /i/ e /é/ “aberto” — sons agudos que podem remeter a um estado de espírito angustiado. No entanto, esses usos de sons, tanto em japonês como em português, dependem de uma grande dose de subjetividade e de boa vontade para provocarem no leitor o efeito desejado. Nem todo leitor vai notar as sonoridades; e dentre aqueles que notarão, nem todos acharão que isso é aflitivo ou angustiante. A prática da tradução poética pressupõe que existam leitores dispostos a participarem do jogo estético e que deixem de lado — ao menos, pela duração da leitura — o ceticismo diante das possibilidades do poema. Além disso, a sensibilidade a ferramentas poéticas como a aliteração e a assonância é um dado cultural, que precisa de uma comunidade interpretativa específica de leitores para um dado tipo de poema. Esses leitores de poemas de um tipo específico não formam um grupo congruente, por exemplo, com a totalidade dos leitores japoneses nem com todos os leitores brasileiros; ou seja, quando se está criando efeitos sonoros em traduções poéticas, na verdade o que se está fazendo é uma tentativa de recriação de propriedades que nem todos veem em um poema na língua de partida, em um novo artefato que nem todos compreenderão de acordo com a intencionalidade do tradutor, na língua de chegada. 

Depois do Kokin’wakashû, foram organizadas mais seis antologias imperiais de waka. A oitava, o Shinkokin’wakashû (“Nova Antologia de Waka Antigos e Modernos”, primeira década do século XIII), forma com o Kokin’wakashû e o Man’yôshû o grupo das “três grandes antologias”, devido à sua grande influência sobre a literatura de épocas posteriores. A concepção estética mais importante e representativa do Shinkokin’wakashû é o yûgen, proposto por Fujiwara no Shunzei. O poeta brasileiro Haroldo de Campos traduz o termo yûgen como “charme sutil”. Para Shunzei, o ideal do yûgen em poesia seria a evocação de associações não explicitadas nas palavras ou na forma do poema. Esse ideal viria, no século XV, a ser adotado pelo grande dramaturgo Zeami para sua concepção do teatro nô. Como exemplo, temos este waka do Monge Jakuren: 

寂しさは その色としも なかりけり 槙立つ山の 秋の夕暮れ
sabishisa wa / sono iro to shi mo / nakarikeri / maki matsu yama no / aki no yûgure 

a melancolia
não vem das cores
tristes da estação
nas montanhas, pinheiros
entardecer de outono 

 Monge Jakuren (Shinkokin’wakashû, livro 4, Outono I, poema 361) 

Nesse waka, o poeta se limita a dizer o que não causa a melancolia outonal, deixando para o leitor a tarefa de imaginar o cenário e de descobrir nessa imagem a sua própria tristeza. 

O estilo Shinkokin’wakashû foi o modelo seguido pelos seis séculos seguintes. Após a morte de Fujiwara no Teika, seus descendentes seguiram dominando o cenário poético. Na medida em que a arte de composição do waka passou a ser um meio para a exibição de erudição e de virtuose com jogos de palavras, a longa tradição do poema japonês foi perdendo vitalidade e, finalmente, entrou em declínio. Estava preparado o contexto em que o haicai se revelaria como a fonte de renovação da poesia.

O haicai é a forma mais curta de poesia do mundo, com 17 sílabas divididas em três versos de, respectivamente, 5-7-5 sílabas. Antes de ser uma forma independente, ele era o hokku, a parte inicial de um renga (“poema encadeado”), quepor sua vez, tem sua origem no waka. O renga surgiu na Corte Imperial da Era Heian (794–1185), mas ganhou impulso maior no século XIII, entre a classe militar. Trata-se de um fazer poético comunitário que precisa de ao menos dois participantes. Antes de iniciarem as rodadas de composição, os poetas definem o número de estrofes que o poema terá. O primeiro terceto obedece à métrica 5-7-5; o dístico final, 7-7. Um renga pode ter 36 estrofes, cem estrofes, mil estrofes, ou diversas outras configurações. Infelizmente, não existem traduções de renga publicadas no Brasil.  

Os primeiros exemplos de renga propriamente ditos datam do século XII. Nessa época, o hábito de fazer poemas encadeados era visto como um passatempo menos sério do que a composição do waka. A primeira “idade de ouro” do renga corresponde à era do regente Nijô Yoshimoto (1320–1388), que conferiu prestígio a essa forma poética, propondo critérios de excelência e organizando a primeira coletânea de renga “sério”, o Tsukubashû (c. 1356). 

Os exemplos mais célebres de renga pertencem ao século seguinte e estão associados à atividade poética do monge Sôgi (1421–1502). Aos quarenta anos de idade, esse poeta realizou uma série de viagens pelo Japão, ensinando composição waka aos daimios do interior e escrevendo tratados de poesia e diários de viagem. Depois de estudar com um mestre da escola Nijô, passou a dar palestras sobre as obras da literatura clássica. 

De volta a Quioto aos cinquenta anos de idade, Sôgi construiu uma pequena cabana de palha em um ponto isolado e passou a se dedicar inteiramente à poesia, conduzindo sessões de renga e dando aulas de composição à alta nobreza. Em 1488, com quase setenta anos, foi designado pelo xogum para presidir as sessões de renga do templo de Kitano — à época, a mais alta honra a que um autor de poesia encadeada podia almejar. No mesmo ano, Sôgi e seus discípulos Shôhaku e Sôchô se reuniram em Minase, no antigo palácio do imperador Gotoba. Em homenagem ao falecido imperador, que fora um importante poeta e defensor das artes, eles compuseram Minase sangin hyakuin (“Cem estrofes de três poetas em Minase”), um renga de estilo solene e sério, considerado como o exemplo mais perfeito dessa forma poética.

A obra de Sôgi tem um estilo sóbrio e despojado, capaz também de ostentar a elegância que o poeta aprendeu com o estudo dos autores da AntiguidadeO ponto alto de sua produção artística se revela em sua capacidade de construir renga harmoniosos em colaboração com seus discípulos, habilidade reconhecida por seus contemporâneos e pelas gerações posteriores.   

Na Antiguidade, o waka de tendência cômica era chamado de haikaiuta (“poemas de brincadeira”). Na Idade Média japonesa (séculos XII a XVII), a palavra haikai passa a ser usada na expressão haikai no renga, para designar um poema encadeado de conteúdo cômico. Na Era Edo (séculos XVII a XIX), o haikai viria a se separar do renga “sério”, evoluindo para um gênero independente.  

No século XVII, Matsunaga Teitoku (1571–1654) fundou a escola Teimon, que estabelecia regras de composição e de apreciação do haikai no renga. É então que o haikai se torna moda por todo o país — e quem sustenta o fenômeno são os poetas de renga. O haikai da escola Teitoku é caracterizado pela comicidade e vulgaridade, com o emprego de gíria e kango (palavras de origem chinesa, que a poesia clássica deveria evitar), distanciando-se, assim, das concepções estéticas do waka, embora mantendo muitos elementos da técnica de composição da poesia mais séria.  Os versos de Teitoku ainda são de caráter humorístico. 

Não satisfeito com o estilo de Teitoku, um grupo liderado pelo poeta de renga Nishiyama Sôin (1605–1682), de Ôsaka, cria uma escola chamada Danrin, que se caracteriza pelos haikai experimentais, livres e inovadores. Enquanto a escola Teimon ainda preserva em grande medida a elegância da poesia clássicaa escola Danrin se dedica radicalmente ao jogo de palavras e, com isso, pela primeira vez o haikai se torna livre da concepção estética do waka mais ortodoxo. 

hokku, a primeira estrofe do haikai no renga, tinha três versos de 5-7-5 sílabas e se tornou, com o tempo, uma parte à qual se dava especial importância, quase independente do resto do poema. Foi com o poeta Matsuo Bashô que o haikai adquiriu o status de verdadeira forma artística. Bashô (1644–1694) desenvolveu um novo estilo, no fim do século XVII, que transcendia a dicotomia entre o sério e o cômico, adotando uma postura humanista e buscando uma dimensão espiritual para compreender a realidade — tudo isso, dentro do limitado espaço do hokku. O legado do poeta no contexto da literatura japonesa é imenso, e suas múltiplas facetas tiveram diferente apelo para cada uma das gerações posteriores.  

Bashô é o poeta japonês mais traduzido no Brasil. De um levantamento realizado por alunos do curso de Letras Japonês da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pudemos identificar, dentre os 31 livros de poesia japonesa publicados comercialmente no Brasil, oito títulos dedicados inteiramente à obra de Bashô, sem contar a sua presença em antologias de vários autores. Além disso, existe uma biografia de Bashô escrita por um importante poeta brasileiro, Paulo Leminski, e muitos outros autores brasileiros afirmam considerar Bashô como uma importante referência em seu fazer poético. 

No final da Era Edo, poemas de três versos de 5-7-5 sílabas já eram compostos independentemente do haikai no renga. Grandes poetas, como Yosa Buson (1716–1784) e Kobayashi Issa (1763–1828) compunham poemas de três versos a que não se seguia uma série de versos encadeadosO estilo do haikai dito clássico já estava consolidado nesse estágio. É a partir do fim do século XIX, com a obra do poeta modernista Masaoka Shiki, que o hokku, isolado do haikai no renga, torna-se objeto de estudo e ganha importância enquanto forma literária. Shiki decide mesmo cunhar um novo nome para a forma poética: haiku, uma fusão da primeira sílaba de haikai e da segunda sílaba de hokku. Seria um erro considerarmos que o haiku, na concepção de Shiki, seja um sinônimo de haikai, ainda que ele tenha suas raízes nesse estilo poético. O haikai é uma poética comunitária; o haiku, por sua vez, é uma arte individual.  

Encontramos um exemplo bastante sofisticado do uso expressivo de sons neste haicai de Shiki: 

柿くへば 鐘が鳴るなり 法隆寺
kaki kueba / kane ga narunari / hôryûji 

ao comer um caqui
ouço o sino do templo
Hôryûji 

Masaoka Shiki (1895 — 5155 / outono) 

Este é, merecidamente, o poema mais famoso de Shiki. Muitos tentaram explicar a superposição de um gosto (o caqui) a um som (o sino) e a presença imaginada, ainda que majestosa, do grande templo, em termos de causa e consequência, como se o sabor da fruta fosse capaz de evocar uma memória, uma imagem, um som, ou mesmo uma alucinação. Mas talvez o que Shiki esteja tentando fazer, aqui, seja algo ao mesmo tempo menos complicado e mais sutil: a repetição da consoante /k/ quatro vezes (que pode ter a função de aludir ao som da mordida) e a sequência de vogais /a/-/i/-/u/-/e/ cria um ritmo acelerado que se interrompe, de repente, com a expressão verbal narunari, que tem um efeito quase mimético com relação ao próprio som do sino. O último verso, preenchido totalmente pelo formidável nome do belo templo, retoma a sequência de vogais, completando-a com o som que falta (/o/), e conferindo um ritmo solene, lento, hierático, ao final do poema (os acentos circunflexos marcam vogais longas, de valor duplo). O poema é baseado na experiência de Shiki ao ouvir o sino de um templo enquanto comia um caqui (sua fruta favorita). O sino, no entanto, era o do templo Tôdaiji, não o do templo Hôryûji. No dia seguinte à sua experiência original, Shiki visitou o templo Hôryûji e decidiu que seria um local mais adequado para o seu poema do que o Tôdaiji, por causa de seus famosos pomares de caqui. Neste ponto, eu me permito imaginar que não apenas a fama das árvores frutíferas, e sim a beleza das vogais, tenha sido determinante na mudança operada pelo poeta. 

E o que posso fazer, eu, tradutor, com esse haicai tão perfeito? Consegui uma aliteração no primeiro verso, com três /k/, e outra no segundo, com dois /s/; além disso, fiz questão de manter o terceiro verso intacto, com sua sonoridade lenta e majestosa. Não consegui fazer muito mais que isso… não fui capaz de incluir em minha versão muitas das nuances de sentido que eu leio no verso japonês. No entanto, para além do poema e de sua tradução stricto sensu, eu me permiti, nos limites do presente texto, acrescentar um parágrafo interpretativo que direciona a atenção do leitor para diversos elementos, tanto do poema japonês como de sua tradução, e que, na minha opinião, enriquecem sua leitura e sua fruição.  

A maioria dos teóricos de tradução que se debruçaram sobre a questão da poesia é contrária ao uso de guias de leitura e de explicações; isso, segundo muitos, seria intromissão do tradutor, e estaria “matando” ou “abafando” o poema. Ora, em primeiro lugar, em resposta a essas críticas, eu proponho que o tradutor, ao apresentar o poema japonês à leitora brasileira, deve se preocupar, não em criar um meio estéril e asséptico para que o poema “fale por si mesmo”, mas antes em causar encantamento e interesse. E isso, eu creio, é tarefa que, ainda que imperfeitamente, o meu parágrafo explicativo pode ajudar o poema traduzido a desempenhar. Em segundo lugar, eu desejo propor que a tradução de um poema não é um trabalho meramente técnico ou neutro, como muitos parecem defender: ele é sempre o resultado de uma interpretação pessoal, subjetiva, do tradutor frente à leitura do poema. Nesse sentido, o poema japonês, apresentado com sua versão em português e guia de leitura ao lado, é uma forma mais transparente de propor à leitora uma tradução poética realizada na modalidade “processo de leitura” — com suas costuras à mostra, por assim dizer.  

A poesia tem em comum com as artes da estrutura, como a pintura, a moda, a escultura e a arquitetura, o fato de que ela constrói formas a partir da união de diversos elementos sensíveis. Esse parentesco com as artes visuais fica ainda mais evidente quando se trata de poesia escrita. Além de ser um artefato de som, a expressão de sentimentos e o resultado de um pensamento, o poema, quando escrito, é também uma estrutura visual. No caso da poesia japonesa no nosso contexto, o fato de que a poesia tem uma dimensão sonora e outra visual teve ramificações de complexidade considerável, devido a características do sistema literário brasileiro que não encontramos em outras culturas. 

No Brasil, a percebida concisão sem retórica do haicai japonês foi o traço que os modernistas adotaram como ideal, já na década de 1920. Graças aos estudos de Paulo Franchetti, sabemos que a obra poética mais importante no contexto da recepção inicial do haicai no Brasil foi Les Haïkaï (1916), do orientalista francês Paul-Louis Couchoud. Mesmo o vocábulo adotado aqui para designar a forma poética vem do título dessa obra hoje esquecida: na França contemporânea, o haicai se chama haiku.  

No Japão, o haicai era, na virada do século XIX para o XX, um sistema poético tradicional, com séculos de história, e foi o realismo europeu (sobretudo o realismo nas artes plásticas) que foi usado como modelo por Masaoka Shiki para renovar o haicai por meio de uma reação contra os velhos modelos. A concisão do haicai clássico — do haicai de Bashô, por exemplo — é muito mais complexa do que se pensava na França, nessa época. Ela depende de sofisticados elementos de intertextualidade e de tropos consagrados pelo uso para expandir suas possibilidades semânticas, e se apoia numa poética da ambiguidade, do vago e do misterioso — e não num ideal de precisão, como imaginavam as vanguardas europeias.  

O segundo momento da recepção do haicai no Brasil, com os concretistas, ainda que caracterizado por um aprofundamento da reflexão sobre o que é um haicai — como gênero textual, como objeto visual, como poética, como filosofia — também dependeu de desleituras da metrópole. Dessa vez, em vez de franceses hoje obscuros, foram os americanos, nas figuras de Ernest Fenollosa e de Ezra Pound, que serviram de mediadores. O ideal de concisão é mais uma vez enfatizado, agora a partir de uma visão “ideogramática” da poesia.  

O uso da palavra “ideograma” nesse contexto, significando algo como “a essência da poesia e sua expansão para além do campo do verbal, incluindo o campo visual”, deve sua origem, em grande parte, a um texto de Ernest Fenollosa (1853–1908) denominado “Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia” (FENOLLOSA, 1977; publicado por Ezra Pound em 1918). Esse ensaio é considerado por muitos como “um manifesto da nova poética do século XX” (SAUSSY, 2008, p. 1) e serviu de base para o “método ideogramático” desenvolvido por Ezra Pound, uma “lógica de especificidades justapostas, ‘detalhes luminosos’ que falam por si mesmos quando o poeta os revela” (SAUSSY, 2008, p. 5). A mesma mitologia foi adotada como precursora pela poesia concreta no Brasil: 

A poesia concreta, indo além da aplicação do processo ideogramático tal como praticado por Pound, introduz o espaço no ideograma como elemento substantivo da estrutura poética. Assim, cria-se uma nova realidade rítmica e espaciotemporal. O ritmo tradicional e linear é destruído.

PIGNATARI, 1982, p. 189

Muitos artistas ocidentais atribuem à escrita ideográfica poderes quase mágicos de comunicação visual que estão bastante longe do uso — tanto pragmático como artístico — que se faz realmente desses caracteres no Japão. Ocorre uma síntese essencialista, que trata coisas diferentes como iguais devido ao raciocínio de que todas pertenceriam à mesma cultura: nessa confusão de conceitos, o ideograma funciona internamente (em sua composição) da mesma maneira que em combinação com outros ideogramas (formando palavras e frases), e a poesia funcionaria da mesma maneira que a estrutura interna e externa desses caracteres. Trata-se de um mantra repetido ad nauseam pelas vanguardas ocidentais: a poesia japonesa é “sintética” e “ideogramática”; une a visualidade e o texto, a exemplo do que fazem os elementos mais básicos de sua escrita. É um insight que permitiu uma importante renovação na poética ocidental, mas que revela uma compreensão muito limitada do funcionamento do poético no Japão — quer nas suas tradições, quer na modernidade.  

O principal argumento usado normalmente contra a hipótese de Fenollosa-Pound é de que a maneira como a escrita japonesa se estrutura está longe de ser primariamente pictográfica. Em sua maioria, os kanji — cerca de 85% de todos os caracteres — são semasiofonéticos, ou fonético-ideográficos. Isso significa que a maior parte dos ideogramas é essencialmente, uma combinação de um elemento semântico com um elemento fonético, o primeiro muitas vezes indicando a natureza geral do item a ser representado e o segundo especificando, por meio do som que representa, a pronúncia da palavra. A maneira como esses caracteres funcionam não tem quase nenhuma relação com a teoria de Fenollosa.  

A teoria da escrita ideogramática apresenta ainda outros problemas, se ela for utilizada para entender a poética japonesa. No Japão, o uso de ideogramas é uma preocupação secundária com relação à oralidade do poema. A visualidade do poema japonês não deve quase nada ao ideograma. A poesia japonesa clássica dá muito mais ênfase à performance oral do poema do que à sua estrutura ideogramática — muitos poetas sequer fazem uso de ideogramas, recorrendo apenas aos silabários no momento de registrá-los.  

Isso não quer dizer que a poesia japonesa não dá ênfase à visualidade de outras maneiras: as artes japonesas valorizam o poema como coisa, por meio da materialidade da escrita e pela ênfase no gesto caligráfico. A tradição artística não compartimentalizou (como a Europa fez) as artes em “formas autônomas”, “suportes independentes”, “especificidades expressivas”, e outros tipos de limitação retórica do fenômeno artístico a meios separados e não dialogantes — quando não declaradamente antagônicos. Yosa Buson, um dos mais importantes haicaístas japoneses, foi por muito tempo considerado antes um pintor e calígrafo, e apenas secundariamente um poeta; foi a posteridade que se encarregou de direcionar o foco ao caráter pluridimensional de sua obra, que combina a arte do pincel com a arte da palavra para criar algo como um campo expandido de experiência artística.  

A cultura japonesa nunca perdeu muito tempo com a compartimentalização dos gêneros literários nem com ideais de autonomia das artes. Desde os primórdios, a escrita foi tratada como uma forma de expressão visual. A poesia sempre foi tratada como canção e vice-versa. As artes plásticas dialogam com a literatura que, por sua vez, está presente nas expressões artísticas ligadas à performance, como o teatro, a música, a dança. A arquitetura não faz distinção entre o prédio e o jardim; o jardim conversa com o texto; o texto é uma meditação sobre a paisagem; a floresta é comparada a uma padronagem da seda… e assim por diante. Propostas ocidentais de criação de uma extravagante “obra de arte total” não fazem muito sentido em um contexto japonês, porque as artes no Japão não foram nunca outra coisa que não totalizantes. O pressuposto é de que tudo é híbrido: a cerimônia do chá é uma filosofia e um evento social; o arranjo de flores é um ritual estético; o mangá é literatura, assim como o cinema; os romances têm poemas; as roupas e a gastronomia dialogam com a pintura; etc. Os exemplos são muitos e o assunto é inesgotável. 

No entanto, essa não é a única maneira de se contar essa história. Quatorze anos antes da Semana de Arte Moderna, o haicai já havia sido trazido ao Brasil pelos imigrantes japoneses. Do Kasato Maru, o primeiro navio japonês a trazer imigrantes ao porto de Santos, em 1908, desembarcou Uetsuka Shuhei (1876–1935), que teria escrito o primeiro haicai feito em terras brasileiras. Subsequentemente, o Brasil recebeu Nempuku Sato (1898–1979), que trouxe consigo os princípios da escola de Masaoka Shiki. Masuda Goga, o maior haicaísta brasileiro, foi discípulo de Sato. Teruko Oda, a maior haicaísta brasileira viva, foi discípula de Goga. É a partir das tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que uma nova vertente de autores de haicai floresce atualmente no Brasil.  

No início, esses grupos eram compostos por imigrantes e descendentes de japoneses. Hoje em dia, no entanto, os clubes e agremiações de haicai acolhem todo tipo de sócio, e a produção poética se dá tanto em japonês como em português. Ao contrário da idealização operada pelos mediadores de língua francesa e inglesa, que encontramos nas teorias adotadas pelos poetas brasileiros modernistas e concretistas, esses grupos desenvolveram um fazer poético em língua portuguesa do Brasil que se apropria de maneira mais direta das práticas dos haicaístas do Japão. Não é à toa que foi essa vertente, mais “humilde” e menos “intelectualizada” do haicai, que se esforçou em criar mesmo um repertório de palavras sazonais relacionadas à geografia brasileira. E não podemos esquecer que a estética contemporânea do haicai valoriza o “humilde”, o terreno, o quotidiano, e despreza as idealizações intelectualizantes, os conceitos esforçadamente sofisticados, as generalizações metafísicas. Essas ênfases redirecionadas refletem escolhas que Shiki fez para a sua concepção de poesia, em oposição às tradições mantidas pelos discípulos de Bashô. 

A história da assimilação do haicai no Brasil pode ser descrita como um processo de tradução cultural. Em um sentido muito forte, trata-se de tradução, de tradução literária, e de tradução de poesia — mesmo quando não se trata, necessariamente, de tradução de poemas. Ainda assim, já se pode perceber que, desde o final dos anos 1950, há uma tentativa, por parte da comunidade nikkei, no sentido de criar uma imagem cultural do Japão menos ligada ao exotismo e legitimada pela tradução direta e por escolhas de títulos em maior sintonia com o campo literário e com o cânone japonês. Esses esforços nem sempre eram recompensados. Um exemplo é este relato de um importante tradutor, Antônio Nojiri, citado por Fabio Kato: 

Por cerca de três décadas, Nojiri foi um tradutor que conseguiu colocar no mercado um bom número de versões diretas do japonês, superando as dificuldades de falta de tradutores profissionais de literatura da língua japonesa e pouco interesse das editoras. […] Nojiri deixou clara a dificuldade ao afirmar que [… poucos títulos] foram traduzidos diretamente do japonês até então. [… Esse] dado representa o quão complicado foi para Nojiri publicar as traduções que realizava.

KATO, 2006, p. 45–46

Outra figura de tradutor brasileiro de textos japoneses é a do tradutor poeta, que usa a tradução de poesia japonesa como um instrumento de pesquisa estética. Nesse sentido, a produção brasileira de poesia japonesa traduzida está tanto ligada ao mundo da tradução como ao mundo do fazer poético. Esse microcosmo literário é complexo, cheio de variações, ecos e diálogos intertextuais. Diferente do que acontece no caso do tradutor profissional sem conhecimento do japonês a quem se encomenda um serviço, o poeta tradutor possui interesses e investimentos na cultura do Japão, e essa modalidade de reescritura poderia ser estudada como um gênero em si. Duas tradutoras poetas deixaram sua marca na década de 1980: Olga Savary e Alice Ruiz. Os primeiros trinta e cinco anos de tradução literária do japonês nos trouxeram apenas uma autora japonesa; com as traduções de Alice Ruiz, meia década nos trouxe, em duas publicações, os poemas de onze mulheres. 

Ainda assim, o nosso sistema literário absorveu apenas alguns elementos específicos da literatura japonesa, valorizando nela aquilo que se acreditava ser mais produtivo em nosso contexto: o haicai, tão aclimatado ao Brasil de hoje que possui grafia local e consta dos nossos dicionários. O que se omite, na maioria das vezes, é o contexto japonês em que o haicai surgiu e evoluiu. Sem conhecer a evolução da poesia japonesa a partir da Antiguidade, é mais difícil compreender muitas das características do haicai clássico — herdeiro de formas, ecos intertextuais, narrativas, princípios estéticos, saberes socioculturais, metáforas e outras figuras de linguagem, critérios de avaliação e formas de transmissão que se consolidaram antes de seu apogeu. Compreender o haicai sem o waka é como apreciar a bossa-nova sem conhecer o samba — possível, porém menos enriquecedor. 

Ainda que possua uma tradição em comum com o waka, a sensibilidade associada ao haicai — e que acreditamos, muitas vezes, ser característica da poesia japonesa como um todo —, não é exatamente a mesma que vamos encontrar em outras formas poéticas dessa mesma literatura. O haicai clássico tem um escopo temático bastante específico, mais limitado, com foco na fruição estética do mundo sensível. O waka também pode abordar a temática do sensível; mas, além disso, trata de temas pouco vistos no mundo do haicai, como amor, erotismo, sexo, ciúmes, loucura, relações familiares, introspecção, abandono, festivais, religião, vingança, morte, e muitos outros. No waka, encontramos muito mais melodrama, uma dicção bem mais ornamental, e um sentimentalismo que lembra, às vezes, o transbordamento de emoções que associamos aos nossos românticos.  

Assim como ocorre com muitos outros aspectos da cultura do Japão, nós brasileiros temos, historicamente, uma relação de intensa atração e fascínio pela poesia japonesa. A essa atração e fascínio vem se somar o fato de que o japonês é uma língua de herança no Brasil, e que o haicai, por exemplo, já é praticado aqui há mais de um século, tendo como que “chegado três vezes” em nossas terras: primeiro com os imigrantes japoneses; depois, junto com as modas francesas; e, por último, via vanguardas estadunidenses. Também como é comum com outros elementos culturais do Japão, a poesia japonesa é aqui, ao mesmo tempo, muito conhecida e ainda muito mal conhecida. Alguns autores, como Bashô, foram traduzidos, retraduzidos, adotados como referência, biografados e canonizados; outras grandes massas de história literária, no entanto, permanecem totalmente ignoradas e sem tradução. No presente texto, eu sequer tentei mencionar toda a poesia que veio depois de Shiki — em grande parte devido à minha ignorância e falta de expertise, mas outro tanto também porque me falta espaço. A verdade é que a história da poesia japonesa é tão caudalosa e rica que seria necessária uma série de artigos sobre o assunto, a cargo de diversos autores, sobre diferentes aspectos, eras, escolas. Espero com este artigo ter contribuído para despertar a curiosidade da leitora para o imenso repertório de possibilidades poéticas e tradutórias que a língua japonesa tem a oferecer, e que vai muito, muito mesmo, além do haicai. 

Sempre que se fala em poesia, o tradutor é obrigado a lidar com o questionamento: “Mas poesia se traduz?”. A piadinha de Robert Frost é sempre lembrada: “Poesia é aquilo que se perde em tradução”. No país de Haroldo de Campos, felizmente, a maldição de Frost é menos insidiosa do que em outras culturas: sabemos, porque temos exemplos de excelência a apontar, que sim, é possível traduzir poesia, e a tradução de poesia pode ser um tipo muito radiante, muito positivo, muito criador e muito criativo, de literatura. Podemos ainda lembrar esta reflexão de David Bellos: 

Pense em um poeta importante, e você certamente pensou em um tradutor, também. […] Não há um ponto de corte entre escrever poemas, escrever traduções, ou escrever traduções de poemas. As formas poéticas — o soneto, a balada, o rondó, o pantum, o gazal — migraram entre línguas tão diversas quanto o francês, o italiano, o russo, o persa, o inglês e o malaio, ao longo dos últimos oito séculos. […] Todas as chamadas “tradições poéticas” são feitas de outras tradições. Ao duvidoso adágio de que a poesia é aquilo que se perde em tradução, precisamos contrapor o fato mais demonstrável de que, de diversos pontos de vista, a história da poesia […] é a história da poesia em tradução.

BELLOS, 2011, p. 44

Com este artigo, busquei, dentre outras coisas, demonstrar que a história da poesia no Brasil é, em parte, uma história da poesia japonesa em tradução. 

Artigo publicado originalmente no site da Fundação Japão em São Paulo em 29 de janeiro de 2021. Referência: CUNHA, Andrei. A poesia japonesa no Brasil. Site da Fundação Japão em São Paulo. Série “Tradução em foco”. Disponível em: <https://fjsp.org.br/traducaoemfoco_andrei_cunha/>. Acesso em: 9 set. 2021.

REFERÊNCIAS

BELLOS, David. Is that a Fish in your Ear? — Translation and the Meaning of Everything. Nova Iorque: Faber and Faber, 2011.

CAMPOS, H. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. Traduções de H. Dantas. São Paulo: Cultrix, 1977.

DOI, Elza Taeko; FRANCHETTI, Paulo. Haikai: antologia e história. 4. Ed. Campinas: UNICAMP, 2012.

FENOLLOSA, E. Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia. In: Campos, H. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. Traduções de H. Dantas. São Paulo: Cultrix, 1977. p.115–162.

KATO, F. Edições brasileiras de ficção japonesa. 2006. 195 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.

PIGNATARI, D. Concrete Poetry: a brief structural-historical guidelinePoetics Today, v.3, n.3, Poetics of the Avant-Garde (1982), p. 189–195.

SAUSSY, E. Fenollosa Compounded: a discrimination. In: SAUSSY, H.; STALLING, J.; KLEIN, L. (Eds.). The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, a critical edition. Nova Iorque: Fordham University, 2008. p. 1–40.

Do travesseiro de um tradutor

Um curto ensaio sobre as minhas obsessões pessoais ao traduzir

Tom Conti, Sakamoto Ryûichi e Jack Thompson (1983)

Eu sou professor de língua e literatura japonesas, e antes disso estudei muitas outras coisas: Direito, Relações Internacionais, tenho curso técnico em eletrônica e por aí vai. A tradução é a coisa que eu sempre fiz quando não estava fazendo as coisas que eu tinha que fazer. É algo que tem um importante lugar na minha identidade, em quem eu entendo ser. Já traduzi muita música pop japonesa, já tive um blog de tradução de poesia e estou sempre traduzindo coisas “só porque eu quero”.

Sempre penso no personagem do Mr. Lawrence (Tom Conti), o oficial tradutor e intérprete do filme Furyo, em nome da honra. Traduzir é ser ao mesmo tempo o centro do ato comunicativo e alguém que é tratado como um instrumento pelos que estão tentando se comunicar.

Quando jovem, eu tinha uma visão muito luminosa, muito benevolente, da tradução. “Traduzir é conectar mundos”, essas coisas. Sempre admirei o ideal da personagem Mafalda, do Quino, que queria ser intérprete da ONU e promover a paz mundial. Mas esse modelo isonômico do ato tradutório já foi há muito desbancado. Existem diversas assimetrias, sempre, quando se está traduzindo: de poder entre aquele que fala e aquele que ouve, entre a tradutora e seu patrão, entre o refugiado e a polícia, entre Dante e o aluno de italiano — isso sem falar na assimetria entre línguas, entre diferentes habilidades de comunicação… A própria ONU com que a Mafalda sonhava pode tanto ser descrita como a materialização de um ideal de universalismo quanto como um pesadelo colonialista com cinco línguas de trabalho (línguas de poder, claro).

Quando penso na Mafalda traduzindo, também sempre penso no personagem do Mr. Lawrence (Tom Conti), o oficial tradutor e intérprete do filme Furyo, em nome da honra, de Ôshima Nagisa (Merry Christmas, Mr. Lawrence, 1983). Traduzir é servir a dois mestres. É ser ao mesmo tempo o centro do ato comunicativo e alguém que é tratado como um instrumento pelos que estão tentando se comunicar. É o paradoxo de que fala David Bellos: ninguém confia no tradutor, porque pelo menos metade do tempo ele está falando uma língua que a gente não entende — ele pode estar negociando o nosso fuzilamento, a gente não tem como saber. Não sei dizer quantas vezes algum brasileiro me viu escrevendo em japonês e comentou: “Tu tá falando mal da gente aí” — ou coisa pior. Quando eu vivia no Japão, os japoneses faziam exatamente a mesma coisa quando me viam escrevendo em português. Como a trágica figura da Malinche, a mulher de etnia nahua que serviu como intérprete de Cortés, a tradutora é frequentemente vista como a personificação de dois medos muito humanos: o medo daquilo que não se entende e o medo de ser traído.

A tradutora é uma figura que está sempre, e por definição, em crise, porque ela não pode nunca ser lida ou interpretada por inteiro. Eu acredito que o tradutor revela a crise como algo permanente, a comunicação humana como algo falho e imperfeito. É uma personagem de bastidores que precisa estar sempre lidando com a repulsa subterrânea que diferentes comunidades sentem umas pelas outras. Talvez a “missão” da tradução seja, portanto, uma “missão maldita”: revelar que existe o caos, e não escondê-lo.

Ewan McGregor e Oida Yoshi (1996)

Ao lado de Tânatos, há sempre Eros. Eu acho que a tradução é um ato erótico em muitos sentidos (trocadilho intencional). Em primeiro lugar, porque a escrita é uma materialidade, o livro é um objeto tátil, e escrever é acariciar uma superfície, deixar nela marcas, indícios. Os computadores inauguraram uma era neoplatônica em que muitas pessoas se permitem imaginar que um livro é um arquivo de texto, uma existência imaterial, uma tripa de zeros e uns morando nas nuvens. Isso tudo é ignorar o fetichismo associado ao objeto livro — o objeto de desejo livro —, fato facilmente verificável em qualquer conversa de ratos de biblioteca. As pessoas que gostam de livros gostam de possuir livros. Têm ciúmes de seus livros. Vão para a cama com os seus livros.

Nessa relação erótica da leitora com o livro, o tradutor é o pivô de um affair complicado, obstáculo entre dois extremos que precisam dele para a consumação do encontro — como no filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway (The Pillow Book, de 1996), que conta a história de um triângulo amoroso entre uma autora (Vivian Wu), seu tradutor (Ewan McGregor) e o editor de seus livros (Oida Yoshi). O personagem de Ewan McGregor — que se chama Jerome como o nosso santo padroeiro — representa a fluidez identitária, a liberdade do corpo, a recusa do monogâmico. Não é à toa que a figura do tradutor é associada, no imaginário popular, à do traidor e à da alcoviteira, à infidelidade e à “indecência”: ela gera em muitos o desconforto que causam as relações não binárias e as situações ambíguas. A tradutora é “invisível”, podendo se imiscuir indetectada nos mais íntimos momentos de leitura, escondendo suas impurezas e enganos no tecido mesmo da relação texto-leitor. A tradutora raramente se encaixa em conceitos simplistas de transparência, permanência e impessoalidade, podendo encarnar a sensualidade dos epicenos, daqueles que pertencem a dois ou mais mundos, daquilo que é efêmero e em permanente transformação.

Em seguida, toda a literatura, mas a tradução em particular, é a modulação de uma voz. É o trabalho de ouvir um som internamente e de produzir variações para esse som externamente. O trabalho de escuta e de fala — em que pese a descorporificação por que passou a cultura do áudio frente à reprodutibilidade técnica nos últimos cem anos — é um trabalho do corpo. A voz-literatura é uma vibração do corpo que atinge sensorialmente outros corpos — pergunte aos cantores, às atrizes. O ato de traduzir, além disso, é único porque visa juntar uma nova voz a uma voz que já existe, formando com ela um contraponto, um diálogo, uma harmonia ou um contraste, como que em um jogo amoroso, um dueto de ópera ou um ritual de acasalamento linguístico. Quando verdadeiro e intenso, o ato tradutório é um mergulho nas vozes do texto, na sensualidade das línguas, na beleza dos corpos que conversam.

Por último, existe uma vertigem, comum na profissão de tradutor, que eu chamo de “possessão tradutória”. Ela ocorre quando a tradutora se imbui de tal maneira do texto que passa a imaginar ser ela a autora. Há muitos tradutores brilhantes que são acometidos desse quase transe alucinatório quando escrevem, e quando esse processo funciona bem ele pode trazer benefícios ao texto de chegada. Por outro lado, e o risco é grande, essa ilusão (narcisista, possessiva, megalomaníaca) de que um texto escrito por outra pessoa pode se tornar nosso acarreta um potencial apagamento da voz autoral. A “possessão” é de mão dupla: a impressão de que a voz da autora nos possui nada mais é do que a ilusão de que se possui a voz da autora. Como no amor, a boa tradução deve resistir à tentação da posse e buscar no respeito à individualidade do outro a realização do encontro. (Spoiler: isso é um ideal mais fácil de se declarar do que de se cumprir.)

A Capela Sistina, antes e depois

Para além do plano do indivíduo e de suas pulsões, a tradução é também uma tentativa de lidar com a questão do tempo no contexto da cultura. Nesse sentido, a metáfora que me ocorre utilizar é a da Capela Sistina, que, por séculos, foi conhecida pela humanidade através de uma espessa camada de fuligem, acumulada ao longo de décadas e décadas de iluminação por velas. Nos anos 1980, com o patrocínio de uma rede de televisão japonesa, as pinturas passaram por um processo de restauração que eliminou quase que por completo todas as camadas extras (cola, cinza, verniz, cera) que revestiam o estuque. Essa capa de sujeira, no entanto, conferia às pinturas uma dignidade sombria e distante que era paradoxalmente adequada ao tema dos afrescos. Mais que isso: como à época de Michelangelo não havia fotografia digital, as pessoas acreditaram, ao longo dos séculos, que a “verdadeira” Capela Sistina era escura e lúgubre. Há também um problema de intenção do artista: a restauração removeu inúmeras sombras, detalhes e contornos que foram adicionados aos afrescos em um momento posterior ao da primeira pintura. Essas adições podem ou não ser de Michelangelo; seja como for, agora estão perdidas. Quando se revelou aos visitantes a capela restaurada, houve uma enxurrada de críticas às cores vivas e luminosas que o processo trouxe de volta à superfície. Goethe e William Blake escreveram sobre pinturas que não existem mais. Há sempre a tentação de se traduzir um texto coberto pela pátina do tempo tal como ele se apresenta à imaginação dos contemporâneos — vetusto, venerável, digno, pomposo. Textos antigos, em geral, possuem uma história de leitores e admiradores célebres ao longo dos séculos, e cada um desses leitores acrescentou sua fuligem ao efeito final da pintura. A tentação da reverência convive com a vaidade de se achar que é possível ir buscar em algum lugar, por baixo das muitas camadas de verniz velho e intertextos, um sentido “original” ao livro, o seu por assim dizer “rosto de juventude”, vívido e luminoso. (Spoiler: isso não é possível.)

Seguido me pedem dicas de como se inserir no “mercado” da tradução literária. Em outras épocas, daria conselhos diversos. Hoje, para começar, eu não acho que eu seja exemplo para ninguém. Há pessoas que desabrocham em carreiras estruturadas, como a Medicina ou o ensino. Outras só florescem em ambientes anárquicos. Uma mesma tradutora pode produzir muito bem em equipe e não tão bem sozinha, ou vice-versa. Muitas das escolhas que eu fiz e que deram certo não seriam muito úteis para outras pessoas — pareceriam digressões ou atrasos para a maioria. Da mesma forma, muitas das escolhas aparentemente “corretas” que eu fiz, visando uma trajetória apolínea, em linha reta, ascendente, são justamente as que me atrapalharam na carreira de tradutor.

Os tempos mudam, também, e o que era uma boa opção dez anos atrás hoje pode ser um erro. A carreira se profissionalizou, e com a profissionalização se criaram diversas concepções do que venha a ser uma “tradução correta, de mercado” que, se por um lado asseguram a qualidade média dos produtos, por outro impedem o surgimento de “tradutoras excêntricas”, gênias fora do molde, novas formas de traduzir.

Mas eu acho que um conselho eu posso dar — que serve para todo o mundo, e que eu me arrependo de não ter seguido desde jovem. Na verdade, não é um conselho meu, é uma parábola do Kafka, intitulada “Diante da lei”. Um homem quer se dirigir ao tribunal para reivindicar sua causa, mas à frente do prédio há um porteiro que não o deixa entrar. O porteiro até que dá umas dicas legais para o cara, diz que ele pode tentar entrar e tal, mas que a função dele, porteiro, é impedir. O cara decide não criar caso, resolve ficar ali, esperando obedientemente que um dia o deixem entrar. Acontecem diversas outras coisas na história, mas o importante é o seguinte: o homem podia forçar a entrada, mas preferiu esperar pela permissão. Os anos se passam sem que ele consiga levar adiante sua causa. Ao final da vida, ainda sem acesso à justiça, o homem ouve do porteiro que aquela porta era só para ele e que, depois de sua morte, ela será fechada. O homem morre, sem nunca ter entrado no prédio.

Muitos dos textos que eu não traduzi são os textos para os quais eu achei que precisava esperar pela permissão. (Spoiler: a permissão nunca vem.)

Artigo publicado originalmente na revista Parêntese em 14 de agosto de 2021. Referência: CUNHA, Andrei. Do travesseiro de um tradutor. Parêntese, n. 88. ago. 2021. LUCENA, Karina (org.). Série “Tradutores pensam a tradução”. Disponível em: <https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/traducao/do-travesseiro-de-um-tradutor/>. Acesso em: 14 ago. 2021.

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