Arquiteturas delicadas para tempos difíceis

artigo publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 2021

Na quase exata metade de seu mais recente livro (p.45), de repente Ricardo Silvestrin nos confunde com um poema de amor que fala de um casal que vive junto há muitos anos e ainda se surpreende um com o outro. A incidência de discurso amoroso em um livro de poemas não deveria, normalmente, causar susto: poesia e amor, afinal, são companheiros frequentes, e há inclusive teóricos que afirmam que foi uma que inventou o outro. No entanto, até chegarmos a esse poema, nada levaria a crer que haveria no livro um momento romântico. Até aquele ponto na leitura, há uma sequência de poemas visivelmente escritos neste nosso agora — sufocante, terrível e sem perspectiva de abraços nem beijinhos.

Em entrevista recente, Silvestrin afirma que “Carta aberta ao Demônio surgiu em um momento no qual todo o mundo estava escrevendo cartas abertas, notas de repúdio, todo o mundo fazendo abaixo-assinado”. O poema epônimo (p. 36) debocha do tom solene dos gêneros textuais em que se inspirou (“venho por meio desta”, “efeméride”, “homenagem”); adota, ainda, para se dirigir ao diabo, um linguajar malandro (“meu chapa”) e faz bom uso da polissemia da palavra “bestas”, sugerindo ao demônio que as leve todas “para os quintos / dos infernos”.

Os poemas da primeira parte se apresentam como um quase diário ou documento: “Porto Alegre é um buraco entre morros, / montanha-russa por onde desce e sobe / uma procissão de carros” (p. 16). O registro é necessário para que, como sugere a epígrafe de Maiakóvski, os leitores futuros possam conhecer a nossa presente atmosfera: “Eu não sabia, / agora sei, / o que é viver / numa ditadura” (p. 30). Parece uma observação óbvia, mas vivemos tempos em que é mais urgente do que nunca dizer o óbvio, estetizar o óbvio, tornar o óbvio de novo visível, repetir exaustivamente o óbvio, porque de há muito o óbvio deixou de ser consenso.

A sequência de poemas-agora ocupa apenas um terço do livro. Os outros dois terços estão divididos em “Outros cantos”, “Errata” e “Atribuído a mim”. Na segunda parte, os poemas têm um marco temporal mais amplo e falam de velhice, de morte, de livre arbítrio. Há um diálogo intertextual com a tragédia grega, uma discussão sobre a força do destino. Aqui, reconhecemos mais facilmente a voz de Silvestrin, um poeta com 37 anos de carreira e que, desde o início de sua trajetória, buscava falar com palavras “simples” de temas “complexos” — as aspas, aqui, indicando que a sua obra problematiza a ideia mesma de uma oposição entre “fácil” e difícil”, entre “erudito” e “popular”, à semelhança de Manuel Bandeira (tema de sua dissertação de mestrado) e de dois poetas que ele admira e traduziu: Kobayashi Issa e Paul Verlaine.

A divisão em partes e o sequenciamento encerram um desígnio. Assim, os poemas de urgência de “Outro tempo” adquirem uma nova profundidade e ancoramento ao serem sucedidos pelas reflexões de maior vagar de “Outros cantos”. O poema de amor mencionado anteriormente, “De mãos dadas” (p. 45), cria um efeito de surpresa na narrativa mas, dois poemas depois, o poeta já está acusando o amor de ser “um sufoco”, “um conceito histórico” com “função no patriarcado” e que precisa “ser superado pela marcha revolucionária” (p. 49). Essas inversões de expectativa ocorrem diversas vezes de um poema a outro, dando textura ao conjunto quando lido na ordem proposta.

Há uma multiplicidade de vozes e formas de ser no mundo: às vezes, é possível apostar na beleza, no futuro; em outros momentos, tudo está destinado a acabar e a verdadeira sabedoria consiste em aceitar esse fim. Os poemas são como que meditações sobre diferentes atitudes mentais diante da vida. O poeta afirma que sua filosofia é o “inexistencialismo”: “Em breves momentos, o que se passa / no meu não tempo e não espaço / coincide com o que se passa no tempo de todos” (p. 32).

Essa possibilidade metafísica é explorada de duas maneiras distintas nas duas últimas partes do livro. Em “Errata”, conceitos abstratos da política e do direito — como nacionalidade, identidade, profissão, cidadania, óbito — são analisados pelo olho rigoroso da linguagem poética, que constata, sem surpresa, que essas ideias tão solenes constituem um mundo de palavras vazias. É inútil buscar um conceito estável de nação, o que já fora afirmado na primeira parte: “Um país é uma ficção, / um amontoado de diferenças” (p. 20). Essa ficção precisa ser desafiada: “quem nasceu neste mapa / quem desfaz essa naba […] / nos dois polos de um ímã / a nação não se irmana” (p. 89). Da mesma forma, aquilo que o Estado entende por “identidade” é um projeto de uma futilidade risível: “assinatura amarga / firmada nesse hoje […] / a vida se liquida / e sobra um documento” (p. 91).

Na última parte do livro, “Atribuído a mim”, o conceito de identidade, analisado em abstrato na seção anterior, é pensado em diálogo com a própria vida do eu lírico, de suas memórias, de seu corpo, de seus escritos. Problematiza-se a ideia de que exista uma congruência entre poeta, texto, identidade, posteridade, etc. O poeta imagina uma obra que sobreviva ao homem que a escreveu, e constata que a obra “inventa um autor / que renasce e recria a obra” (p. 100).

A julgar pelas resenhas críticas já disponíveis, Carta aberta ao Demônio vai causar impacto imediato graças à primeira parte — a que está em diálogo direto com o período histórico sombrio que estamos vivendo. O próprio subtítulo, “Outro tempo”, anuncia que essa seção foi escrita em um momento anômalo, como a explicar ao leitor do futuro a urgência dos versos: “Haverá um tempo (ou não haverá) / em que a história será outra. / Por enquanto, é o que temos” (p. 26). Os 22 poemas do início formam um todo coeso, claustrofóbico, às vezes quase insuportável, de atualidade. O princípio é o contrário daquele proposto por Wordsworth, que definia a poesia lírica como “emoção que se recorda na tranquilidade”. Forjando a ferro quente, o poeta documenta nossos interessantes tempos: “Viver na história, / com seu jogo de circunstância, / perda, ganho, derrota e glória” (p. 34).

Ouso imaginar que, em outros tempos, futuros leitores vão se interessar pela segunda parte, a das canções de experiência, e que vão encontrar ali um poeta de reflexões de largo alcance, destiladas ao longo de décadas de ofício poético. Uma música mais suave, mas que fica na mente por muito tempo.

No entanto, foram as duas últimas seções as que mais me impressionaram, pessoalmente. Se o livro fosse um soneto, e se as duas primeiras partes fossem as estrofes de quatro versos, as partes III e IV são os dois tercetos, a cristalizar uma arquitetura delicada para tempos difíceis. Se a sociedade e a língua são incapazes de unificar “um amontoado de diferenças”, o tempo se encarregará de apagar a memória de qualquer vida, de qualquer verso, de qualquer realidade. A estrutura transcende a soma de suas partes. Emerge do conjunto uma visão complexa do papel da poesia nos acontecimentos terrestres.

Artigo publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 9 de outubro de 2021. Referência: CUNHA, Andrei. Arquiteturas delicadas para tempos difíceis. Caderno de Sábado (CS), Correio do Povo, Porto Alegre: p. 2, 09/10/2021. Disponível em: <https://www.academia.edu/56964703/CUNHA_Andrei_Arquiteturas_delicadas_para_tempos_dif%C3%ADceis_Caderno_de_S%C3%A1bado_CS_Correio_do_Povo_Porto_Alegre_p_2_09_10_2021>. Acesso em: 10 out. 2021.

Autor: andreiscunha

Olá! Meu nome é Andrei Cunha. Sou tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

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