Quem traduz literatura japonesa no Brasil

artigo publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 2020

No Brasil, muitos ainda tratam a literatura japonesa como se fosse arte de marcianos. Há quem avise já de saída que se interessa apenas por “literatura ocidental”, eximindo-se por antecipação de pensar o planeta de forma mais integrada. Não há dúvida de que a visão de mundo que mais seguido eu encontro ao discutir literatura é realmente a “ocidental” — no sentido de que aqui aceitamos, como um pacote fechado, a visão importada de mundo que o tal de “ocidente” nos fornece.

Tomemos o haicai como exemplo. Tal como praticado hoje, no Brasil, o haicai pode ser acusado de diversas coisas — mas de exótico à nossa cultura, não. O haïkaï,assim todo francês em sua grafia, já era mencionado em 1925 por Paulo Prado no prefácio a Pau Brasil, de Oswald de Andrade. A palavra está dicionarizada em português e é parte importante de nossa tradição poética há, pelo menos, oito décadas — mais precisamente, desde que Guilherme de Almeida publicou os seus haicais, em 1937. A poesia japonesa foi revisitada pelo movimento concretista, que reivindicava para si a estética “ideogramática” proposta pelo americano Ezra Pound e pelo russo Sergei Eisenstein — a cujos textos recorremos até hoje para entender o “ideograma”, a despeito de suas nacionalidades não japonesas.

Mas essa não é a única maneira de se contar essa história… Pode-se dizer que o haicai foi trazido antes, pelos imigrantes japoneses. Do primeiro navio japonês a atracar no porto de Santos, em 1908, desembarcou Uetsuka Shuhei, que teria escrito o primeiro haicai feito em terras brasileiras. Na geração seguinte, o Brasil recebeu Nempuku Sato, que trouxe consigo os princípios da escola de Masaoka Shiki (o renovador do gênero para o modernismo japonês). Masuda Goga, o maior haicaísta brasileiro, foi discípulo de Sato; Teruko Oda, a maior haicaísta brasileira viva, foi discípula de Goga. É a partir das tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que uma nova vertente de autores de haicai floresce atualmente no Brasil: no início, esses grupos eram compostos por imigrantes e descendentes de japoneses; hoje em dia, os clubes e agremiações de haicai acolhem todo tipo de sócio e a produção poética se dá tanto em japonês como em português. No entanto, como esses fazeres poéticos se baseiam em comunidades não centrais à cultura brasileira considerada como “alta”, e como não fazem referência a línguas ou culturas de prestígio, elas ainda são vítimas de incompreensão. A literatura dos países “exóticos” precisa passar por um processo de mediação antes de ser aceita no Brasil. Nossa concepção de poesia japonesa veio forjada por um orientalismo de segunda mão — um orientalismo periférico.

Um dos “perfis de tradutores de obras literárias japonesas” que encontramos no Brasil é o do tradutor profissional de uma língua hegemônica, como o inglês ou o francês, a quem é proposta a tarefa remunerada de traduzir um texto japonês a partir de outra tradução pré-existente para uma língua “intermediária”. Esse tipo de tradutor não escolhe o que vai traduzir e raramente possui afinidade com a cultura ou a literatura do Japão, tendo sido selecionado para o trabalho pelo critério da competência tradutória em uma língua que não a japonesa. Hoje em dia, as traduções literárias indiretas são cada vez menos aceitas. Muitas obras estrangeiras são divulgadas com a informação expressa de que foram traduzidas diretamente da língua de partida, deixando implícito que são mais valiosas se feitas assim. Em Portugal, para fins de comparação, até hoje as traduções indiretas são a norma para textos japoneses.

Outra figura de tradutor brasileiro de textos japoneses é a do tradutor poeta, que usa a tradução de poesia japonesa como um instrumento de pesquisa estética. Nesse sentido, a produção brasileira de poesia japonesa traduzida está tanto ligada ao mundo da tradução como ao mundo do fazer poético. Esse microcosmo literário é complexo, cheio de variações, ecos e diálogos intertextuais. Diferente do que acontece no caso do tradutor profissional sem conhecimento do japonês a quem se encomenda um serviço, o poeta tradutor possui interesses e investimentos na cultura do Japão, e essa modalidade de reescritura poderia ser estudada como um gênero em si. Duas tradutoras poetas deixaram sua marca na década de 1980: Olga Savary e Alice Ruiz. Os primeiros trinta e cinco anos de tradução literária do japonês nos trouxeram apenas uma autora japonesa; com as traduções de Alice Ruiz, meia década nos trouxe, em duas publicações, os poemas de onze mulheres.

A partir dos anos 1990, ganha destaque a atuação de professoras universitárias pertencentes à comunidade nikkei. Uma representante dessa vertente é Meiko Shimon, que nasceu em Quioto e se mudou para o Brasil em 1953. Shimon teve participação instrumental na terceira leva de traduções (diretas) de Kawabata Yasunari, lançadas pela editora Estação Liberdade nos anos 2000. Além disso, seu trabalho como professora de literatura japonesa na UFRGS contribuiu de forma decisiva para formar uma nova geração de tradutores do japonês. De um total de 218 títulos de literatura japonesa traduzida no Brasil entre os anos de 1945 e 2020, 29 foram traduzidos por alunos, ex-alunos ou professores do Instituto de Letras da UFRGS.

A maioria dos títulos japoneses publicados em tradução no Brasil vem de São Paulo, com uma pequena participação do Rio de Janeiro. A única cidade fora do centro a entrar para a lista de locais onde se publica literatura do Japão no Brasil é Porto Alegre, por diferentes motivos: aqui, desde 1986, há um curso de Letras japonês; o Rio Grande do Sul possui uma tradição rica e antiga de poetas e de tradutores; e Porto Alegre é um reduto de pequenas editoras bastante ativas nas áreas de poesia e de escrita criativa.

Artigo publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo em 10 de outubro de 2020. Referência: CUNHA, Andrei. Quem traduz literatura japonesa no Brasil. Caderno de Sábado (CS), Correio do Povo, Porto Alegre: p. 2, 10/10/2020. Disponível em: <https://www.academia.edu/56963962/CUNHA_Andrei_Quem_traduz_literatura_japonesa_no_Brasil_Caderno_de_S%C3%A1bado_CS_Correio_do_Povo_Porto_Alegre_p_2_10_10_2020>. Acesso em: 10 out. 2021.

Autor: andreiscunha

Olá! Meu nome é Andrei Cunha. Sou tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora