A literatura e o culto à natureza no Japão

Kawase Hasui, “Futamigaura” (1933). “Casal de Rochas” (meotoiwa, 夫婦岩), costa de Futami, província de Mie, Japão. Note a gigantesca corda que liga as duas pedras em matrimônio e o portal xintoísta no topo da pedra masculina, um sinal de que se trata de um local sagrado.

Não se trata aqui de defender a ideia de que haveria um nexo causal entre, de um lado, uma literatura (uma cultura) que tradicionalmente dá centralidade ao tema da natureza e, de outro, o surgimento de uma consciência nacional da necessidade da preservação do meio ambiente, o que resultaria — levando mais adiante o raciocínio — em atitudes comunitárias de maior respeito aos seres vivos e ao planeta terra.

No entanto, essa noção é bastante corriqueira. Em visita ao Japão, o antropólogo Claude Lévi-Strauss levou na mala o pressuposto de que, sendo a arte de lá tão voltada a temas relacionados à natureza, os japoneses teriam especial respeito pelo meio ambiente (em oposição aos ocidentais, destruidores do planeta). Eis o relato do ajuste que teve de fazer in loco:

A relação do homem com a natureza que, ao pensar no Japão antes de visitá-lo, eu idealizara um pouco demais, me reservava outras surpresas. Viajando pelo país, percebi que o culto das belezas naturais, ilustrado, aos olhos do Ocidente, por seus maravilhosos jardins, pelo amor às cerejeiras em flor, pela arte floral e até mesmo pela cozinha, podia se acomodar com uma extrema brutalidade diante do meio natural.

Lévi-Strauss, 2012, p. 99; tradução de Rosa Freire d’Aguiar

E de fato, se há traço marcante da experiência de ser estrangeiro no Japão, é a surpresa de encontrar o double standard (expressão de Lévi-Strauss que poderia ser traduzida como “dois pesos, duas medidas”) aplicado a inúmeras áreas da atividade humana: o novíssimo convivendo com o arcaico (na tecnologia, na arquitetura); um forte senso de comunidade, igualdade e democracia que não faz objeção ao culto do aristocrático, da hierarquia ou da figura do Imperador; o sincretismo religioso que permite aos japoneses serem budistas, xintoístas e agnósticos ao mesmo tempo, sem conflitos espirituais; e a idealização da natureza, concomitante à sua esporádica destruição sem remorso.

Antes de prosseguir, talvez fosse útil eu explicitar a minha definição operacional de “natureza” para o presente texto. Não se trata da natureza do biólogo, na qual está inserida também a espécie humana, sua fisiologia e suas atividades. Utilizo aqui o conceito de Soper (apud Shirane, 2012) de “entendimento leigo da definição de natureza”, segundo o qual a palavra seria

usada em referência a elementos comumente observáveis no mundo: o ambiente natural (oposto ao urbano e ao industrial: paisagens, áreas não-cultivadas, o campo, o rural), animais (domésticos e silvestres), a materialidade do corpo no espaço e as matérias primas.

Shirane, 2012; minha tradução

A definição precisa ser adaptada ao contexto japonês e levar em conta a dimensão diacrônica. Em primeiro lugar, a agricultura tradicional pode ser considerada como parte da natureza, mas as monoculturas de grande escala que fazem uso de pesticidas, não. O mesmo vale para separamos a pesca artesanal da de navios pesqueiros. A jardinagem, tal como desenvolvida no Japão, é uma arte e uma técnica (paisagismo, feng shui, etc.), e entra antes na categoria de representações da natureza, não no reino do natural. A essa atividade vêm se somar outras artes tradicionais japonesas, como o bonsai (盆栽, cultivo de árvores anãs), o ikebana (生け花, arte do arranjo floral) e a gastronomia, que, ainda que façam uso de matérias-primas naturais, são produtos culturais e representacionais.

É claro que essa delimitação tem problemas e “zonas cinza”. Até onde podemos dizer que a paisagem japonesa é natural, após mais de um milênio de seleção humana de espécies? O rural pode realmente ser considerado como “natural”? A materialidade do corpo humano existe sem cultura que a defina? Isso posto, existe algum fenômeno natural que seja observado pelo humano sem a contaminação do cultural? Poderíamos exemplificar citando a lua, que, para um japonês, tem conotações diferentes das que possui para um brasileiro (Shimon, 2002); ou o sapo, considerado repulsivo e indesejável aqui, e grande cantor e um deus benéfico no Japão. Esses elementos (sapo e lua) não são nunca “apenas um animal”, ou “apenas um corpo celeste”: eles têm sempre uma camada de cultura que os impede de serem totalmente naturais.

É importante diferenciar também, no caso japonês, as catástrofes naturais e as de origem humana. Podemos nos basear nos escritos de Kamo no Chômei (século XII) para o levantamento de uma lista tradicional de catástrofes: tornados, tufões e tempestades, de um lado; e terremotos, de outro, seriam dois tipos de catástrofes naturais. A fome e os incêndios podem entrar na categoria intermediária de tragédias humanas que se devem a fatores naturais. Por último, a tirania dos governantes é uma catástrofe social. Kamo no Chômei não menciona, mas poderíamos acrescentar a esse rol, a guerra, como catástrofe humana; as pestes e epidemias, como catástrofes híbridas (humanas e naturais, ao mesmo tempo); e as enchentes, os tsunami (津波, maremotos) e as erupções de vulcões como fenômenos naturais que ocorrem esporadicamente em território japonês. Modernamente, vêm se somar a essas forças destruidoras o desmatamento, a poluição e os acidentes nucleares (catástrofes humanas).

A ambivalência da cultura do Japão frente a uma natureza que pode tanto gerar a catástrofe como o belo é o tema daquela que talvez seja a mais conhecida obra de arte japonesa: “A grande onda de Kanagawa” (神奈川沖浪裏, Kanagawa oki nami ura), de Katsushika Hokusai (1831).

“A grande onda de Kanagawa”, de Katsushika Hokusai (1831), talvez a mais conhecida obra pictórica japonesa.

Sobre essa obra, afirma Edmond de Goncourt (um dos primeiros críticos de arte do Ocidente a reconhecerem a importância da pintura japonesa) que se trata de uma

representação um pouco divinizada de uma onda, composta por Hokusai sob o efeito do terror religioso do medonho mar que circunda toda a sua pátria: desenho que nos mostra a cólera do vagalhão subindo ao céu, o azul profundo do interior transparente de sua curva, e o rasgo de sua crista que se espalha em uma chuva de gotículas, com a forma de garras de animais.

Goncourt, 2006; minha tradução; o texto é de 1892

Embora carregada do melodrama característico de um autor ocidental de sua época, a descrição de Goncourt penetra corretamente no fundo religioso, e enxerga a importância da presença do mar para um artista japonês. Faltaria apenas fazer referência à miniaturização das figuras humanas diante da imensidão das forças da natureza, e a interessante brincadeira com o contorno do Fuji (que, até o século XVIII, era um vulcão em atividade), repetido pelo próprio desenho da onda em escala maior, como que a advertir que o tamanho da catástrofe depende principalmente da proximidade da vítima.

Desde a pré-história, surge, no arquipélago japonês, a crença de que os elementos naturais — as montanhas, os rios, os fenômenos meteorológicos, as pedras, as árvores e os animais — possuem um espírito. Essas crenças se consolidaram posteriormente na religião xintoísta, que, juntamente com o budismo, forma o binômio sincretista da religião japonesa.

Ainda hoje, muitos deuses desse culto são elementos da natureza. Por exemplo, na costa da província de Mie, há ainda hoje um “casal de rochas” (meotoiwa, 夫婦岩), que representaria os deuses Izanami e Izanagi (o par que dá origem aos outros deuses, segundo o Kojiki).

Durante a transição entre os períodos Jômon e Yayoi (3000 a.C.), os japoneses passaram do modelo caça-pesca-coleta para o estágio da sociedade agrária. Essa mudança exigia que as florestas e montanhas fossem transformadas em propriedades produtivas. No processo de conversão da natureza em ordenados campos de arroz, houve desmatamento, derrubada de árvores centenárias, e matança de animais. Nesse momento histórico, fortaleceram-se as crenças de que a natureza selvagem abrigava deuses violentos, que representavam os perigos das cheias e das intempéries, numa sociedade que já dependia totalmente da produção agrária.

Susanoo, o deus que combate as forças da natureza, era associado à organização social e política da sociedade Yamato, necessária para a construção de barragens e canais, destinados a conterem as águas e enchentes (Shirane, 2012). No período seguinte, ocorre uma mudança importante nas atitudes religiosas com relação à natureza. Os deuses violentos são associados ao plantio do arroz, tornando-se deuses benfazejos, que protegem a lavoura. A religião passa a ser um culto dos ciclos da natureza, que devem ser observados para a prática da agricultura. Nota-se a transição de uma concepção da natureza como sendo hostil para uma natureza domesticada e benigna.

Aqui se consolidam os dois modos de estilização da natureza: o aristocrático e o rural. Nas narrativas setsuwa (contos populares) que, ainda que redigidas por membros da aristocracia, têm sua origem em tradições orais dos habitantes das aldeias, encontramos “cães, lobos, castores, guaxinins, raposas, gatos, tigres, ursos, vacas, veados, javalis, ovelhas, momonga [esquilos voadores], ratos, coelhos, macacos e até mesmo elefantes”. Essa sensibilidade se opõe à da literatura aristocrática, cuja fauna “se resume a insetos, pássaros, veados e gatos”. Trata-se de uma natureza estilizada, elegante, que privilegia a “harmonia entre a esfera do natural e a do humano, com as duas esferas se tornando uma metáfora uma da outra” (Shirane, 2012).

O gosto aristocrático privilegia as estações amenas: o outono ou a primavera. Por contraste, os contos populares, longe da concepção estilizada da mudança de estações, retratam catástrofes, furacões, enchentes. Pode-se dizer, portanto, que a arte e a literatura japonesas retratam a natureza ora como fonte de medo e incerteza, ora como retrato domesticado de um mundo belo e sutil. Essa dicotomia vem, de um lado, da experiência da catástrofe, e, de outro, de um desejo de suavização das arestas do mundo, desejo que foi associado historicamente à aristocracia e ao gosto artístico dos poderosos.

La nature au second degré

Os japoneses têm uma relação bastante intensa com a natureza e o ciclo das quatro estações, não apenas no domínio da arte e da literatura, como no da gastronomia, da moda, dos bens de consumo e dos meios de comunicação de massa. O serviço de previsão do tempo, nos jornais e canais de televisão do Japão, inclui, no outono, o prognóstico do dia do mês em que as folhas tingidas de vermelho vão aparecer em cada cidade; na primavera, os locutores de jornais televisivos fornecem informações sobre onde e quando as cerejeiras vão florir.

As paisagens famosas e pontos turísticos também refletem o ciclo das estações, com lugares célebres pela floração de suas árvores, e outros pelo colorido de suas folhas outonais. É interessante observar também que a mudança das estações no Japão está incorporada à maneira como a nação dá conta de si mesma. A previsão do tempo é uma narrativa de unificação nacional, da mesma maneira que o futebol no Brasil. É uma experiência orquestrada pela mídia para tomar o país inteiro de assalto, como se o cor de rosa das flores neutralizasse as diferenças regionais.

O amor dos japoneses pela cerejeira é literalmente milenar. Shirane Haruo (2012) estabelece a seguinte cronologia para o culto dessa flor:

No Man’yôshû [万葉集, antologia poética que inclui textos dos séculos V ao VIII], a palavra “flor” (花, hana) se refere a um amplo espectro de diferentes espécies de plantas e árvores floríferas. A flor mais popular era a da ameixeira do Japão (Prunus mume, 梅, ume); a cerejeira (Prunus serrulata, 桜, sakura) vinha em segundo lugar. Na Era Heian [séculos VIII a XII], ao contrário, as principais flores da primavera passaram a ser a cerejeira, e ameixeira e a rosinha da montanha (Kerria japonica, 山吹, yamabuki). No Kokin’wakashû [古今和歌集, antologia poética que inclui textos dos séculos VIII ao X], a palavra “flor” se refere primariamente à flor de cerejeira, o que indicaria que esta se havia tornado a flor suprema da primavera.

Shirane, 2012; minha tradução

Eis um exemplo do Kokin’wakashû, de autoria da poeta Ono no Komachi (825? – 900?):

hana no iro wa / utsuri ni keri na / itazura ni 
waga mi yo ni furu / nagame seshi ma ni 

花の色は 移りにけりな いたづらに 
我身世にふる ながめせしまに 

a flor da cerejeira
perdeu sua cor em
vão minha juventude
passou enquanto eu
distraída olhava a chuva

Ono no Komachi. Kokin’wakashû, v. 2, “Primavera II”, 113

Este waka (poema japonês de 5 versos) emprega várias palavras com duplo significado, expressando diferentes pensamentos, sejam subjetivos e emocionais, sejam objetivos e descritivos: nagame (“chuva contínua; contemplar, mergulhar em reflexão”); furu (“decorrer do tempo; chover; envelhecer”). Além disso, a “mudança das cores da cerejeira” é uma metáfora do “declínio da beleza de uma mulher”. O poema pode ser descrito como uma reflexão sobre a transitoriedade da existência humana.

Poemas do Japão antigo — seleções do Kokin’wakashû

Seleção de 165 poemas do Kokin’wakashû, a primeira antologia poética japonesa realizada por ordem imperial (séc. X). 

CUNHA, Andrei. Poemas do Japão antigo: seleções do Kokin’wakashû. Porto Alegre: Bestiário/Class, 2020.

A cerejeira é um aglomerado de metáforas associadas. Em Tóquio, as árvores florescem na última semana de março, ou na primeira de abril, deixando o inverno definitivamente para trás e celebrando a primavera. Nesse sentido, a flor de cerejeira é um (re)começo, clichê permanente de discursos de diretores de escola e reitores, saudando os alunos na volta às aulas. O cor de rosa desmaiado das flores pode fazer referência ao sexo ou ao erotismo; à beleza da juventude; à suntuosidade da Capital Imperial. Assim como florescem em uníssono, elas fenecem em poucos dias, chuva rosada caindo ao chão. Alguns poemas fazem alusão à semelhança entre a queda de pétalas e a neve (pureza). O curto espaço de tempo em que permanecem floridas tem conotações budistas, e fala da efemeridade da juventude, da beleza, da glória, da vida, do dinheiro, do luxo e das pretensões humanas: as flores que caem são um sic transit gloria mundi, um vanitas vanitatis e um memento mori (e um et in Arcadia ego). O esplendor das flores pode também ser associado à virtude sem artifícios do samurai, e à disposição do soldado em morrer jovem, no calor da batalha, sem perder a beleza de sua retidão moral (por exemplo, os kamikaze, durante a Guerra do Pacífico).

A metáfora sobreviveu até a pós-modernidade, e reaparece, por exemplo, em Norwegian Wood (1987), de Murakami Haruki (1949 – ). Aqui temos um exemplo de associação entre a flor e a morte:

Passei o dia inteiro na varanda encostado em uma pilastra, contemplando o jardim […]. Continuei a admirar as flores de cerejeira. Na penumbra primaveril, as flores pareciam uma carne viva irrompendo de uma ferida infeccionada. O jardim se enchia do aroma putrefato, doce e pesado, daquela carne podre. […] Entrei no quarto e fechei as cortinas, mas o aroma da primavera já havia impregnado todo o ambiente. O aroma invadia tudo sobre a terra. Mas a única coisa que ele me trazia à mente era um odor pútrido. Dentro do quarto, com todas as cortinas fechadas, odiei mortalmente a primavera.

Murakami, p. 301; tradução de Jefferson José Teixeira

Toru, o narrador de Norwegian Wood, é um descendente pós-moderno do Genji (personagem central do romance de Murasaki Shikibu, escrito no século XI). Este “irootoko que gosta de Beatles” expressa, aqui, o sentimento de mononoaware [もののあはれ, “emoção (que sentimos ao nos depararmos com a transitoriedade) das coisas”]. Às vezes traduzido como pathos, esse conceito central às artes japonesas tem forte influência budista e se refere à beleza no fluir do tempo. Trata-se de uma consciência da fugacidade e impermanência desta vida, um sentimento de piedade universal, que se tornará o principal conceito estético e visão de mundo do século XI, sobretudo a partir de O Romance do Genji.

Assim como a flor de cerejeira, muitas outras metáforas fundamentais da poética japonesa fazem uso de elementos naturais. O “Prefácio” do Kokin’wakashû (?913), de autoria de Ki no Tsurayuki (872 – 945), que procura definir o gênero literário da poesia lírica, inicia assim:

やまとうたは、人の心を種として、万の言の葉とぞなれりける。世の中にある人、ことわざ繁きものなれば、心に思ふことを、見るもの聞くものにつけて、言ひ出せるなり。花に鳴く鴬、水に住む蛙の声を聞けば、生きとし生けるもの、いづれか歌を詠まざりける。力をも入れずして天地を動かし、目に見えぬ鬼神をもあはれと思はせ、男女の中をも和らげ、猛き武士の心をも慰むるは歌なり。

A poesia japonesa brota do coração humano, que é a sua semente, e suas folhas crescem como dez mil palavras. Neste mundo, as pessoas têm muitos interesses diferentes, e aquilo que pensam em seu coração, expressam em poesia, quando falam sobre as coisas que viram e escutaram. Basta ouvir o rouxinol do Japão, que canta em meio às flores, ou a voz do sapo que vive na água, para entender que todos os seres vivos produzem algum tipo de poesia. A poesia é aquilo que, sem esforço, move o céu e a terra e emociona até os ogros e deuses que nossos olhos não podem ver. Ela harmoniza as relações entre homem e mulher e consola mesmo o coração de ferozes guerreiros.

Ki, apud Ozawa, 2000; minha tradução

Pode-se notar aqui uma deliberada confusão entre o mundo humano, o dos animais, o das plantas e mesmo o mundo sobrenatural: todos pertencem ao mesmo continuum e produzem (ou são sensíveis à) poesia (Miner, 1990, p. 84). A poesia é um “canto”, como as vozes dos bichos, e a composição de poesia seria algo “natural” para os humanos. O sapo e o rouxinol (o rouxinol do Japão, ugúisu, Cettia diphone) são tópicos consagrados da poesia clássica, e considerados como possuidores de “belas vozes”. O prefácio de Ki no Tsurayuki enfatiza o papel central da natureza, tanto como estímulo para a criação de poesia, como quando afirma que a poesia é uma forma de expressão natural ao ser humano. Segundo Madalena Hashimoto:

Cultiva-se uma poesia (ka) que tematiza o sentimento do homem (jo) em relação à natureza (kei): jokeika [叙景歌]. […] [O Kokin’wakashû], em vinte volumes, tem seis deles classificados conforme as estações, as quais também aparecem nos poemas amorosos; perfazem-se, portanto, em mais da metade, as tópicas de elementos da natureza relacionadas às estações, como, por exemplo, os setsugekka (雪月花, “neve-lua-flor”), ou kachô-fûgetsu (花鳥風月, “flor-pássaro-vento-lua”).

Hashimoto, 2002, p. 47

No século XII, baseando-se na concepção de Ki no Tsurayuki, o poeta Fujiwara no Shunzei (1114 – 1204) estabeleceu um importante modelo cognitivo e intertextual, segundo o qual a poesia sobre a natureza é importante para a apreciação da natureza. Esse modelo soa bastante moderno: seriam a arte e a linguagem as responsáveis por nossas percepções e emoções com relação à natureza? Para os poetas do período clássico japonês, a poesia seria a cultura necessária para essa apreciação.

 No entanto, se, por um lado, a poesia aristocrática valorizava a natureza como tema, também é verdade que, na Era Heian, os nobres não saíam quase nunca de casa. O contato com a natureza não era direto, e se dava por meio dos jardins dos palácios, ou por meio de pinturas, desenhos, poemas e relatos. Ou seja, a “natureza”, na vida dos nobres do período clássico, se encontrava em toda parte, tanto espacial como psicologicamente, mas se tratava em grande parte de uma natureza reconstruída.

Trata-se de um fenômeno que Shirane Haruo (2012) denomina de nijiteki shizen (二次的自然), ou “natureza secundária”: a natureza “não era vista como algo oposto ao mundo humano, e sim como uma extensão dessa esfera”. Essa “natureza secundária” foi um fator decisivo na construção do imaginário e da estética dos japoneses; a “ênfase não está em como a natureza é, e sim em como ela deveria ser: graciosa e elegante”. A tão difundida noção de que os japoneses são um povo em harmonia com a natureza se deve à criação dessa “natureza secundária”, que na verdade é uma temática literária e artística para expressão de sentimentos e para reforçar um ideal de ausência de conflitos e de beleza elegante.

Sei Shônagon (séculos IX – X) é uma das mais importantes vozes do processo histórico de estabelecimento da estética da “natureza secundária”. Eis a primeira página de seu O Livro de Travesseiro:

春は、あけぼの。やうやう白くなりゆく、山ぎは少し明かりて、紫だちたる雲の細くたなびきたる。夏は、夜。月のころはさらなり、闇もなほ、蛍の多く飛びちがひたる。また、ただ一つ二つなど、ほのかにうち光りて行くもをかし。雨など降るもをかし。秋は、夕暮れ。夕日のさして山の端いと近うなりたるに、烏の寝どころへ行くとて、三つ四つ、二つ三つなど、飛び急ぐさへあはれなり。まいて雁などの連ねたるが、いと小さく見ゆるは、いとをかし。日入り果てて、風の音、虫の音など、はた言ふべきにあらず。冬は、つとめて。雪の降りたるは、言ふべきにもあらず、霜のいと白きも、また、さらでもいと寒きに、火など急ぎおこして、炭持て渡るも、いとつきづきし。昼になりて、ぬるくゆるびもていけば、火桶の火も白き灰がちになりてわろし。

             Na primavera, o amanhecer. As bordas das montanhas que, lentas, vão clareando, o céu que se ilumina, e as nuvens, violetas, finas, deslizando sobre os cumes.

             No verão, a noite. Com lua, claro, mas também no escuro, quando os vaga-lumes voam, desordenados; ou só um, ou dois, ou mais, brilham leves; ou quando chove, é tão bonito.

             No outono, o entardecer. Quando o sol se põe, brilhando perto das encostas, e, de três ou quatro, ou de dois ou três, os corvos passam, voando apressados de volta ao ninho, é tão triste, e ao mesmo tempo, tão bonito. Se os gansos selvagens voam enfileirados e se veem, pequenos, ao longe, é ainda mais bonito. Quando o sol já se pôs, e se pode ouvir o som do vento e o canto dos insetos, então nem se fala.

             No inverno, as manhãs, bem cedinho. As manhãs de neve, é claro, mas também as manhãs muito brancas de geada, ou nem isso, as manhãs apenas muito frias em que os servos correm de uma peça para outra, reacendendo os braseiros e trazendo mais carvão: como a cena combina com essa época do ano! Mas lá pelo meio-dia o frio diminui, e as brasas se cobrem de cinza branca, e ninguém se importa em reavivá-las.

Sei Shônagon, O livro de travesseiro (abertura)

Madalena Hashimoto afirma que este trecho canônico é uma “reflexão profunda entre as metonímias da natureza e da cultura”. É como se a arte tivesse por missão organizar os elementos da natureza, prescrevendo, para cada estação do ano, “determinado pássaro, planta, flor, local, hora, vestuário, incenso, poema, papel, cor, música, atitude, como que numa colagem de elementos de diferentes categorias, numa elaboração de um conjunto de justaposições” (Hashimoto, 2002, p. 48). Nessa estilização, há cortes importantes e escolhas estratégicas: resta da natureza uma versão sem extremos, focando apenas nos aspectos mais suaves, harmônicos e elegantes (“poéticos”) da fruição das mudanças do meio ambiente.

Catástrofes humanas e catástrofes naturais

O Japão é a nação mais industrializada da Ásia e a terceira maior economia do mundo. Historicamente, o país fez sua revolução industrial no final do século XIX e se tornou, ao longo do século XX, em um dos maiores importadores de matérias primas e combustíveis fósseis do mundo. Um dos principais fatores por trás do envolvimento do Japão na Segunda Grande Guerra foi a percepção das lideranças políticas e militares da época, que acreditavam que o país se encontrava em um beco sem saída quanto ao fornecimento de aço e carvão, e que a solução para esse dilema seria colonizar outros países ricos em minério (Nye, 1997, p. 90-91).

Durante o período do milagre japonês, na década de 1960, a prioridade foi dada ao desenvolvimento econômico acelerado, em detrimento da preservação da qualidade do ar e da água dos rios. Até os anos 1970, muitos japoneses foram vítimas da chamada síndrome de Minamata, que causa atrofia de nervos e músculos, devido à contaminação por mercúrio (OMS, 2013). A deterioração do meio ambiente, no entanto, foi rapidamente revertida nos anos 1980, quando o governo direcionou investimentos e esforços importantes no sentido de recuperar todos os cursos d’água e a fauna e flora silvestre (Henshall, 2011, p. 254-255). Um problema que persiste é o uso abusivo de agrotóxicos, não tanto na agricultura, e sim na jardinagem, por exemplo, de gramados para a prática de esportes como o golfe, contaminando a região do entorno dos campos (World Watch, 2004).

Ainda que o sistema de coleta, separação e reciclagem do lixo no Japão seja extremamente sofisticado e eficiente, ainda há o problema da emissão de dioxina pelos incineradores (Pollack, 1997) e a questão ética por trás da “exportação de lixo” para outros países da região Ásia-Pacífico (Kakuchi, 2000). Os japoneses utilizam hashi descartáveis, que até há pouco tempo eram feitos em outros países, a partir do desmatamento não sustentável de florestas tropicais (Nuwer, 2011). Outro problema enfrentado por governos locais no Japão é a questão do lixo eletrônico, que é de mais difícil e dispendiosa reciclagem; no entanto, nessa área a legislação e a infraestrutura apresentaram visível melhora a partir dos anos 2000 (Lytle, 2003).

Existe também a questão do especismo. Ainda que a consciência ecológica e a empatia com os animais da maioria dos japoneses seja bastante pronunciada, algumas espécies de animais não se incluem nessa consciência. O caso mais conhecido é o das baleias, que são até hoje apreendidas para consumo humano, ainda que os barcos baleeiros japoneses se declarem como estações de pesquisa. Claude Lévi-Strauss afirma que é a própria “ausência de distinção nítida” entre o humano e o meio ambiente (que ele encontrou na cultura japonesa) que pode explicar também “o direito que se atribuem os japoneses […] de sacrificarem, se preciso, a natureza às necessidades” humanas. Esse “raciocínio perverso” seria utilizado, segundo o antropólogo, para justificar moralmente a pesca da baleia (Lévi-Strauss, 2012, p. 99).

Há também o terrível problema da energia nuclear. Esse fantasma surge em diversos momentos da história do país; destacarei aqui dois. Primeiro, ao final da Segunda Guerra Mundial, com o bombardeio de Hiroxima e Nagasáqui. As consequências desse ataque ainda são sentidas pelos sobreviventes, e foram instrumentalizadas pelos governos do pós-ocupação para a criação de um discurso de apelo à “paz mundial”. No entanto, raramente se dá voz às verdadeiras vítimas e, infelizmente, são poucas as tentativas de se refletir historicamente sobre qual teria sido a medida de responsabilidade das lideranças japonesas na destruição avassaladora ocasionada pela guerra no Pacífico.

Da tragédia de Hiroxima e Nagasáqui, nasceram duas obras primas do “romance de não-ficção” japonês, ambas publicadas em 1965: Chuva Negra (edição brasileira de 2011), de Ibuse Masuji (1898 – 1993) e Notas de Hiroxima (ainda sem tradução no Brasil), de Ôe Kenzaburô (1935 – ). O primeiro narra a vida e o destino de pessoas que foram contaminadas pela radiação das bombas nucleares; o segundo faz uma reflexão sobre o significado histórico e humano da tragédia, a partir dos relatos e vozes dos próprios sobreviventes. Muitos japoneses da geração de Ôe se tornaram pacifistas e se declaram radicalmente contra o uso de materiais radioativos, tanto para fins militares como “pacíficos”; a forte oposição interna, no entanto, não impediu a construção e manutenção, entre as décadas de 1950 e 2000, de cerca de cinquenta usinas nucleares em todo o território japonês.

Após o acidente de Fukushima, em 2011, iniciou-se o gradual desligamento das usinas, e desde o mês passado (outubro de 2013), a energia elétrica produzida no país é totalmente não nuclear. No entanto, a contaminação do meio ambiente persiste, e não há previsão de quando a região de Fukushima voltará a estar livre da ameaça nuclear. Além disso, a aposentadoria das usinas nucleares significou um importante aumento na emissão de gases decorrentes da queima de combustíveis fósseis (Macalister, 2013).

É um paradoxo que, por um lado, o Japão tenha assimilado o modelo desenvolvimentista das nações do Ocidente e baseado seu crescimento econômico em práticas predatórias do meio ambiente, e que, por outro lado, as filosofias tradicionais japonesas tenham servido como fonte de inspiração para pensadores ocidentais que buscaram nos conceitos do zen-budismo, por exemplo, uma base filosófica para o pensamento ecológico. O budismo é, afinal de contas, uma filosofia apropriada à crítica do antropocentrismo humanista europeu (Grapard, 1988).

No entanto, como afirmei no início do texto, não se trata aqui de achar uma relação de causa e consequência entre o culto tradicional da natureza no Japão e práticas “ecologicamente corretas”; tampouco estou sustentando que a literatura japonesa, rica em imagens de comunhão entre seres humanos e o meio ambiente, resulte, de maneira automática, em uma cultura nacional de respeito à natureza. Como vimos, as atitudes no Japão, evidenciadas em especial na prática de suas empresas e no modelo desenvolvimentista adotado por sucessivos governos, podem muito bem resultar em atividades hostis e destrutivas com relação ao planeta.

Por outro lado, Pascale Casanova afirma que os “dois universos, o ‘mundo’ e a ‘literatura’”, não são de todo “incomensuráveis” (Casanova, 2002, p. 418). Se formos adotar uma abordagem meramente descritiva dessa aparente contradição entre as atitudes e mentalidades relacionadas à natureza nos planos — distintos — da literatura e da sociedade no Japão, podemos afirmar que  “a literatura pode ser definida simultaneamente — e sem contradição — como objeto irredutível à história e como objeto histórico, mas em uma historicidade propriamente literária” (p. 420).

O movimento inverso também é possível. Raramente se consegue encontrar na literatura um espelho transparente da realidade (social, histórica, ambiental) a que ela pertence. O que passa pela conceptualização e estilização do literário adquire vida própria, a um tempo autônoma e parte integral, do mundo onde surgiu. Assim, a natureza “literária” ou “secundária” do Japão — presente em seus poemas, narrativas, ensaios — reflete a seu modo a paisagem do país e a mentalidade dos habitantes desse lugar, mesmo que ela não seja a paisagem ou o conjunto das atitudes sociais a que está atrelada. Ela pode, no entanto, resultar dessas paisagens e atitudes; e, a seu turno, ajudar a formar essas realidades.

É notória a intervenção operada pelos japoneses, ao longo dos séculos, na distribuição das espécies de árvores nas montanhas, bosques e cidades: por meio da seleção humana, há hoje mais cerejeiras e bordos do que há mil anos, quando a cerejeira se tornou a árvore florífera preferida do Japão. Como foi mencionado anteriormente, antes disso, a árvore mais querida era a ameixeira; e o declínio do favoritismo de uma espécie com relação a outra se operou (e se refletiu) na literatura. Na Idade Média, os poemas de cerejeira já são maioria; plantam-se mais cerejeiras em alusão a esses poemas, e os novos poetas se sentem movidos pela beleza das flores a escreverem ainda mais poemas de cerejeira. Essa idealização da paisagem — que resulta na adequação da natureza em conformidade à cultura — talvez seja o princípio mais constante em toda a tradição literária japonesa.

Se por um lado o culto à natureza no Japão é artificialista, não se deve minimizar a medida de “realismo brutal” presente na mesma literatura. Como o exemplo de Kamo no Chômei testemunha, é possível encontrar nos autores japoneses uma visão muito pragmática de uma natureza terrível e destruidora, em conformidade tanto com a experiência nacional de uma região onde os tsunami, vulcões, terremotos e tufões são correntes, quanto com a concepção budista de um mundo efêmero, onde as veleidades humanas não têm valor de permanência.

Kamo no Chômei (1155 – 1216) é o autor do Hôjôki, ou Relato da cabana de nove metros quadrados. Trata-se de um pequeno ensaio do gênero zuihitsu (miscelânea ou prosa de não-ficção). É um exemplo de literatura inja (隠者文学), ciclo de textos da Idade Média japonesa, escritos por homens retirados da sociedade e que decidiram viver de forma austera, praticando os preceitos budistas do desapego. Na primeira página do Hôjôki, afirma-se o conceito de transitoriedade das coisas. É um dos trechos mais conhecidos da literatura japonesa:

ゆく河の流れは絶えずして、しかももとの水にあらず。よどみに浮かぶうたかたは、かつ消え、かつ結びて、久しくとどまりたるためしなし。世の中にある人とすみかと、またかくのごとし。

A água do rio que vai não cessa e, além disso, a que ora corre não é a mesma água que antes foi. As bolhas que flutuam nas águas paradas se desfazem, e logo voltam a ser, e não vemos o que elas duraram. O mesmo se dá com a gente e as casas deste mundo.

Kamo no Chômei, Hôjôki (abertura)

Desde o início, está anunciada a métaphore filée que vai estruturar o texto. A terra, a casa e o corpo são as “moradas” daquilo que é permanente: a alma. As moradas são temporárias, e não está nelas a salvação. Só é capaz de atingir a paz espiritual aquele que renunciar aos bens materiais. Por outro lado, e isso é uma característica da estética japonesa do período, as obras de arte, a música, a literatura e a apreciação das belezas naturais não são consideradas como integrantes da categoria “bens materiais”; elas são, antes, caminhos de enriquecimento da alma, e conduziriam a um estado superior de sabedoria de vida.

Chômei descreve então cinco catástrofes ocorridas na capital, por ordem cronológica: um grande incêndio; um tornado; a transferência da capital por ordem de Kiyomori em 1180; a grande fome de 1181 a 1182; e um terremoto. Ao descrever os desastres, Chômei cita inúmeras vezes o destino das moradas e as atitudes das pessoas. No incêndio, as pessoas fogem de suas casas para salvarem suas vidas, e não conseguem salvar seus pertences. Seus objetos mais valiosos viram cinzas. O autor busca demonstrar que, quando a vida está em risco, as pessoas percebem a irrelevância dos objetos e da moradia. Ao comentar as catástrofes naturais, Chômei destaca, entre todas, o terremoto como a situação emblemática, em que algo que deveria ser estável e fixo (a terra) se torna incerto.

Temos em seguida uma descrição do lugar onde mora Chômei, e uma comparação com suas antigas moradas e suas condições anteriores de vida. Ele também relata o seu cotidiano no monte Hino, a prática ascética, o fazer poético, suas contemplações de paisagens, a prática com os instrumentos musicais e o charme de cada estação do ano. O autor revisita a ideia da morada provisória e reflete sobre a sua cabana, comparando-se ao paguro (pequeno crustáceo), que não precisa de nada além de uma morada pequena, e à águia pescadora, que constrói sua casa à beira de penhascos por temer o contato humano. Por fim, ele percebe que não conseguiu alcançar o desapego a que se propôs, pois ainda gosta demais de sua cabana e da vida tranquila que leva ali. O tom do texto é bastante pessimista, e está de acordo com a concepção budista do mappô, comum à época em que Kamo no Chômei viveu. O mappô shisô [末法思想] é uma profecia que consta das escrituras budistas, afirmando que um dia os ensinamentos religiosos não serão mais observados e o mundo acabará. Durante a Idade Média no Japão, acreditava-se ter entrado no período do mappô no ano de 1052.

Cabe ressaltar que o próprio Kamo no Chômei é capaz de, ao mesmo tempo, ver a natureza como algo hostil e belo, numa suplementaridade de funções. Como fica claro da leitura de Relato da cabana, a diferença entre um meio ambiente destruidor e acalentador se revela não exatamente nos efeitos — ora desastrosos, ora benéficos — da natureza sobre os humanos, e sim sobre a atitude que os humanos têm diante da morte, da perda, da vida e dos bens materiais. No universo profundamente moral e budista da obra, as catástrofes existem para aqueles que não atingiram a paz espiritual, ou que não se desapegaram de uma vida de posses e vaidades.

Essa retidão moral almejada pelos autores da literatura inja permaneceu como um elemento da tradição literária japonesa até o século XX. Gostaria de comentar como alguns aspectos desse “budismo estético” estão presentes na obra de dois autores japoneses da modernidade, e podem servir como antídoto à modernização e ocidentalização por que passou a sociedade japonesa. Mais ainda, são exemplos daquilo que a literatura pode fazer: a mensagem de reflexão crítica que vem na esteira desses escritos tem apelo internacional, e pode, no contexto da pós-modernidade, ajudar a compor um corpus ecocrítico.

As contradições decorrentes do advento de uma sociedade urbana e industrial no início do século XX são o tema central do romance Kokoro/Coração (2008; primeira publicação em 1914), deNatsume Sôseki (1867 – 1916), um dos mais importantes autores do realismo japonês. O livro parece desejar pôr à prova o princípio do isolamento e da vida ascética, heranças do budismo, em um contexto moderno.

De um lado, Kokoro/Coração descreve as obrigações da tradição (respeito aos pais, lealdade, honra, submissão à vontade do grupo, reverência à nação e ao governo), que são prescritas pela filosofia confucionista e a via pela qual a Restauração Meiji buscou conduzir o Japão ao grupo das “nações desenvolvidas” e imperialistas. De outro, há a espiritualidade budista que incita ao isolamento e ao quietismo, como único caminho para a paz espiritual. Somem-se a essas contradições os novos ideais individualistas e utilitaristas, importados do Ocidente, e podemos dizer, como Roberto Yokota, que o romance demonstra “a dolorosa internalização psicológica [desses conflitos] no contexto da modernização” (Yokota, 2008, p. 16).

As personagens de Sôseki resistem ao individualismo ocidental; no entanto, rejeitam também (ainda que silenciosamente) o coletivismo imposto pela autoridade japonesa, calcado na tradição e retomado em um discurso de construção do Estado-Nação, discurso que, ainda que essencialmente moderno, precisa, para se instaurar, criar a ilusão coletiva de profundidade cronológica — daí o apelo que faz a valores ancestrais, heróis do passado, e o legado de guerras antigas. Esse Estado-Nação, que as personagens de Sôseki rejeitam mas de cujas exigências não conseguem escapar, é o lugar do excesso de cultura, do mal-estar da civilização, que se encontra em uma posição de antagonismo frente à natureza. Incapaz de vencer as forças dessa cultura monstruosa, o herói sôsekiano se entrega à passividade, ou recorre ao suicídio.

Um poeta da geração seguinte, Miyazawa Kenji (1896 – 1933), tem como ponto de partida o mesmo mal-estar, porém faz escolhas estéticas e existenciais diferentes. Autor de uma obra extremamente original e de interessantes ressonâncias com outros modernistas (Walt Whitman, Emily Dickinson e o Alberto Caeiro de Fernando Pessoa, por exemplo), Miyazawa era devoto da seita budista Nichiren, vegetariano, e acreditava que o ser humano não tinha o direito de matar outros animais. Segundo seu biógrafo e tradutor americano, a sua obra é uma afirmação de “que todos os humanos e animais são parte da criação, e nós devemos todos viver em harmonia, juntos, ou então pereceremos juntos” (Pulvers, 2007, p. 20).

Miyazawa parte do princípio de que devemos renunciar ao ego — o ego que as personagens de Sôseki têm esmagado sob o peso da modernidade — para atingirmos a paz espiritual. Mais ainda: no seu universo, não há hierarquia entre as espécies, e os bichos de suas obras falam, sentem e sofrem como os humanos (motivo pelo qual muitos de seus contos, ainda que extremamente complexos do ponto de vista filosófico, são considerados como “literatura infantil”). Um poeta da natureza que não faz uso das convenções literárias para falar dos animais e plantas, ele incorpora o vocabulário das ciências (astronomia, geologia, química, etc.) para descrever um universo em expansão e sempre surpreendente. O planeta que ele imagina admite tanto a tradição, como os fenômenos naturais, e a ciência que os descreve, numa utopia onde todos esses elementos convivem harmônicos, ainda que dispersos e sem hierarquia.

洪積世が了って
北上川がいまの場所に固定しだしたころには
こゝらはひばや
はんやくるみの森林で
そのところどころには
そのいそがしく悠久な世紀のうちに
山地から運ばれた漂礫が
あちこちごちゃごちゃ置かれてあった
それはその後八万年の間に
あるいはそこらの著名な山岳の名や
古い鬼神の名前を記されたりして
いま秩序よく分散する

ao final do período diluviano
quando o rio kitami começou a se fixar em seu atual curso
havia matas de criptomérias
bosques de bétulas
nogueiras aqui e ali
ao longo de séculos tumultuados infindáveis
trazidos das serras pela correnteza seixos cascalho
espalhados amontoados por toda parte
e ao final de oitenta mil anos
como os nomes talvez de montes famosos
de deuses demônios constantes em registros
agora se dispersam seguindo uma ordem

(21 de março de 1927)

O universo de Miyazawa Kenji guarda elementos da natureza idealizada da literatura tradicional: seu cuidado com a precisão do vocabulário (nome de árvores, de eras, de tipos de pedras) faz homenagem aos clássicos; no entanto, já não se trata de uma natureza secundária a entidade com a qual o poeta deseja se fundir — os nomes “de deuses e demônios constantes em registros” já foram esquecidos, ou estão espalhados pela terra. É o planeta geológico das ciências modernas, com suas camadas tectônicas e milênios de história mineral, que sua imaginação descreve. Em sua cegueira para hierarquias humanas (ou naturais) pré-estabelecidas, Miyazawa afirma que as pedras “se dispersam seguindo uma ordem” — a ordem a um tempo calculada e aleatória de uma eternidade que ele sonhou, de uma harmonia possível entre a cultura e a natureza.

Este texto é uma adaptação do artigo: CUNHA, Andrei. Alguns aspectos literários do culto à natureza no Japão. In: SCHMIDT, R.; MANDAGARÁ, P. (Org.). Sustentabilidade: o que pode a literatura?. 1ed. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2015, p. 191-210. Disponível em: <https://www.academia.edu/22814061/Alguns_aspectos_liter%C3%A1rios_do_culto_%C3%A0_natureza_no_Jap%C3%A3o>. Acesso em: 10 set. 2021.

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Autor: andreiscunha

Olá! Meu nome é Andrei Cunha. Sou tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

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